30 novembro 2017

Ode a três vivos . . .

  e  REQUIEM PARA UMA ESCOLA MORTA

São três vivos, remanescentes da primeira turma de técnicos têxteis da Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil criada e administrada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial Concluímos o curso no ano de 1951. Portanto, estamos comemorando 66 anos de formatura. Somadas , as idades dos três produzem 261 anos , o que não é pouco. A Escola, que ganhou a abreviatura de ETIQT – é agora o CETIQT, um Centro Tecnológico de grande reputação dedicado à pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, notadamente no campo das fibras sintéticas. O CETIQT organizou uma festa na qual, entre outras atividades, homenageou os três vivos.
 Vou comentar a festa mas antes gostaria de entender melhor o que significa somar 261 anos. Em primeiro lugar, gostaria de saber a idade dos três. Pouco me lembro das aulas de álgebra daquele tempo, quando usávamos régua de cálculo.   Tudo o que sei é que um, tem dois anos a menos e o outro tem dois anos a mais do que o primeiro. Isso me permite montar uma equação com 3 incógnitas, certo? 
  
 Portanto:  x +y +z = 261
Sei também que:
y = x + (x-2)   e   z = x + (x+2)    
Então:   261 = x + (x-2) + (x+2)
Mas, como é que eu tiro o valor de x ?  Não tenho a menor ideia. Mas observo que (x-2) e (x+2) se anulam. Então, vou dar uma pedalada:

261= (x) + (x) + (x)   Logo,    x = 261 dividido por 3, o que me dá 87
Os outros dois terão, obviamente 85 e 89.

Bem, volto à festa. Foi uma cerimônia bonita, como já disse, na qual os três vivos foram  homenageados, recebendo cada um, uma placa comemorativa. Compartilhei com Alberto Roque Perrone, o (-2) e Dirceu Amauri de Miranda, o (+2), momentos de extrema felicidade e memórias que marcaram nossa convivência, renovando as energias para o que ainda vem pela frente. E devo registrar que tudo isto não teria existido se não fosse a competência e a abnegação de dois colegas membros da Associação Brasileira de Técnicos Têxteis, Júlio Caetano e Waumy Correa na promoção e organização do evento. A eles, nosso carinho e gratidão.

Na cerimônia, pediram-me que dissesse algumas palavras. Aceitei, honrado, a incumbência e usei oito minutos do precioso tempo da plateia contando como foi o início das aulas naquele mês de Março de 1949.

Reproduzo:

1   -  Ilustríssimo Senhor Aguinaldo Diniz Filho, Presidente  do  Conselho do SENAI .     .         CETIQT
2   -   Ilustríssimo Senhor Nelson Pereira Junior, Presidente   da ABTT
3   -   Ilustríssimo Senhor Sergio Motta, Diretor-Executivo do  SENAI CETIQT
4   -   Ilustríssimo Senhor Fernando Pimentel, Presidente da  ABIT
          Colegas da primeira turma, Dirceu Miranda e Alberto Roque Perrone, aqui presentes ; colegas e professores das sessenta e cinco turmas que nos sucederam na Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil, concebida e administrada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial ; Senhoras e Senhores :

Nos primeiros dias de Fevereiro  de 1949 desembarcavam no Rio de Janeiro cinquenta candidatos ao curso de técnico têxtil vindos de todos os Estados do país. Foram alojados num casarão da Rua Bela, em São Cristóvão até que ficasse pronto o alojamento definitivo, no quarto andar do prédio que ainda hoje existe. Submetidos a um exame de seleção, foram aprovados trinta e dois candidatos. Formava-se, assim, a primeira turma da ETIQT.

A Escola iniciava as aulas apenas com sua estrutura de concreto, poucas paredes e muitos andaimes. Não havia portas nem janelas. O piso, era a laje bruta.
O barulho das betoneiras interrompia o professor que ora fitava o chão, ora levantava o olhar para os céus, esperando sua vez de falar.
O regime era duro: quatro horas de aulas teóricas pela manhã, quatro horas de aulas práticas à tarde e, à noite estudo dirigido, obrigatório, de duas horas. Ao meio dia o Alfredo, um garçom com cara de mordomo inglês, metido em uma espécie de fraque e gravata borboleta, servia o almoço.

O Diretor da Escola era o professor Mario Souto Lyra, formado pelo Instituto Lowell, na Carolina do Norte. Da mesma escola vinha o professor de tecelagem Horst Gaensli que também ocupava uma diretoria na Fábrica Bangu. Não há como deixar de mencionar outros professores da época e o faço sabendo que vou omitir nomes importantes pois valho-me da memória : O professor Oldegar Vieira, de Português, introdutor do Hai Kai no Brasil, que fundou o Caetés - Centro Acadêmico dos Estudantes ;  Deolindo Dominguez Vicente, na Fiação, com seu sotaque espanhol ; Ivo Piccoli, professor de Física, criador do  “suprassumo do extrato do graveto  seco” ;  Manir Japor, de Matemática, com sua muleta e perna engessada que duraram seis meses ; Henrique Mariani no Desenho Têxtil, e suas gigantescas e sufocantes folhas de papel milimetrado ; Emil Kwaiser com sotaque austríaco, ensinava Mecânica Aplicada, era também professor de balística na Escola Técnica do Exército ; O Professor Rocha , de Inglês, irmão de Carlito Rocha, o famoso treinador do Botafogo ; Dom Gerardo, frade do Mosteiro de São Bento, no Rio, na cadeira de História das Artes, nos ensinou a apreciar Giotto e Caravaggio.

Logo chegaram as máquinas de fiação e tecelagem as quais foram sendo montadas com a ajuda dos alunos. Sala de abertura da Saco Lowell, cardas, passadores e maçaroqueiras da Tweedales & Smalley, teares Draper e Crompton. Uma atividade frenética marcada pelo cheiro do algodão cru, um verdadeiro afrodisíaco.
Uma coisa nos distinguia das turmas de hoje: Nossos cálculos eram feitos com régua de cálculo e tábua de logaritmos. Extrair a raiz quadrada de um número era uma operação que exigia papel e lápis,  e a comunicação com as namoradas que havíamos deixado em nossos Estados de origem era feita com uma carta escrita a tinta, que demorava uma semana para chegar, e muitas vezes chegava com a letra borrada por uma lágrima furtiva .

Sessenta e seis anos se passaram. A Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil cresceu, transformou-se em um Centro Tecnológico de grande reputação, expandiu suas atividades para além do simples processo de transformação de matérias primas,  abrangendo novos segmentos da cadeia têxtil. Digno de nota, entre o seu esforço de aprimoramento, é a recente decisão do CETIQT de transferir o seu campus  para uma área nobre da cidade,  já em pleno andamento.

Paralelamente, em 1962, criou-se a ABTT, que congrega os profissionais têxteis e continua o seu aperfeiçoamento através de congressos, seminários e feiras, entre outras atividades, e que desempenha hoje um papel importante na integração Universidade/Empresa.
Em nome da primeira turma da ETQT presto aqui uma homenagem às 65 gerações de técnicos que nos seguiram bem como ao seu Corpo Docente que, com dedicação e carinho, foi responsável pela sua formação. Presto também  homenagem  aos membros da ABTT, felicitando-os pelos seus cinquenta e cinco anos de existência e conclamo-os a permanecerem ativos e alertas enfrentando os desafios tecnológicos que se apresentarem, as adversidades decorrentes das políticas econômicas, os contingenciamentos  impostos por  políticas internacionais, e, acima de tudo, a complexidade e a burocracia que prevalece na regulamentação das empresas industriais em nosso país.

E se um dia, queridos colegas, tiverem dificuldade na execução de seus cálculos, com seus computadores, não se deixem abater.  Lembrem-se ; nós usávamos régua de cálculo e tábua de logaritmos.

...   e  REQUIEM PARA UMA ESCOLA MORTA

A ODE  aos vivos termina aqui. O REQUIEM fica para outra oportunidade.




25 maio 2017

O SENSO DO DEVER



Uma história da vida real

Rio Branco Fabril S.A. é uma empresa têxtil de médio porte. Como a maior parte das empresas do ramo têxtil no Brasil, é uma empresa de estrutura familiar. É dirigida por um Conselho Administrativo formado por três irmãos, um dos quais, na realidade, é uma irmã:  Mafalda. Ela é Presidente do Conselho. Enérgica, autoritária e de poucas palavras, ela é responsável pela área técnica e dirige o seu setor com mão- de- ferro.  Sob seu comando direto está o Roberto que exerce o cargo de Diretor Técnico. É ele quem organiza a estrutura das gerências em que se divide a fábrica: Produção, Vendas, Compras, Pessoal, Fiação, Tecelagem, Acabamento, Expedição e muitos etcetras.  Por fim,  temos o Arthur, que comanda uma dessas Gerências. Sem grandes brilhos, é um funcionário dedicado, pontual e muito apreciado por seus colegas.
Como qualquer empresa do ramo, das chamadas  “ mão-de-obra intensiva”, a Rio Branco trava uma batalha diária na luta pela competitividade: reduzir custos. É deles que depende a sobrevivência da empresa. E essa é a principal responsabilidade do diretor técnico: o nosso Roberto.
Roberto é um executivo exemplar. Ele sabe que precisa de pulso firme se quiser obter resultados. Do faxineiro ao gerente, todos os dependentes devem ser treinados, orientados, motivados e ...  fiscalizados.  Para deixar claro o seu papel, Roberto criou um mote, que alardeia por entre as máquinas, a título de advertência: “Empresa não tem alma”.  Quando reunia seus  gerentes, ele começava:

 Roberto –“ Não se iludam, companheiros, empresa não tem alma. Prestem atenção ao serviço! Tem que trabalhar direito! Empresa não tem coração, empresa só tem cérebro.”

Pois um dia, o dia chegou. A fábrica perdia competitividade. As vendas caiam. Os concorrentes começavam a incomodar. Era preciso fazer uma reestruturação. Roberto reformulou produtos, simplificou operações, remanejou funções. Resultado: sobraram gerências. O que significava extingui-las. Demitir gerentes. É assim mesmo.  “Empresa não tem alma”.
Entre elas está a gerência do Arthur. Roberto o conhece bem. Funcionário  exemplar,  competente,  afável  no trato com os companheiros, não havia nada que pudesse justificar sua demissão.  Mas a gerência dele não existe mais.  Ele está sobrando, ponto final. Tem que ser demitido. Arthur chegou aos 48 anos, idade na qual, segundo a tradição administrativa que herdamos dos norte-americanos, o executivo deve ser defenestrado. ( ao contrário do Japão onde, nas empresas, “ninguém é nada antes dos sessenta anos” ). O executivo que perder o emprego perto dos cinquenta anos de idade terá que sair à cata de outro com o cuidado de não dizer “estou   desempregado”. Ele terá que dizer:  “estou no mercado”. 
Arthur se notabilizara não só pela sua competência  técnica mas também pela fertilidade de sua esposa  que correspondera à pujança do marido contemplando-o com oito filhos. Oito! Uma escadinha etária cujo primeiro degrau beira os seis anos e o último alcança os umbrais da universidade.

Um sentimento de piedade começa a abalar o nosso valente Roberto. Aquelas oito almas não lhe saem da cabeça. O que seria daquela família com o pai desempregado? Ainda mais um técnico que só sabe fazer pano?  Roberto começa a fraquejar. Seu conflito aumenta.  Se não demitisse o gerente esvaziado estaria traindo a empresa a que serve e isto o deixaria desonrado profissionalmente. Sentia-se mal até porque o posto que ocupava era um posto de confiança. Roberto brigava com a razão. Mas o coração prevaleceu. Não iria deixar oito almas desamparadas. E resolveu o problema de forma que lhe pareceu racional: criou um apêndice junto à gerência de controle de qualidade, mantendo, portanto o seu status, com o título de “Setor de Acompanhamento de Atividades E1speciais”, reportando-se diretamente ao Diretor Técnico.

Em paz com a sua consciência, nessa noite, Roberto dormiu o sono dos justos.  No dia seguinte chamou o Arthur e,  para não lhe criar criar um constrangimento, não falou em demissão mas apenas em  “ remanejamento “.
Roberto – “Arthur, com a reorganização da fábrica a tua gerência foi extinta. Você passa para um setor especial com todos os teus direitos garantidos, inclusive teu status hierárquico”. 
Arthur – “ Ainda bem, né, chefe. Não se fala de outra coisa a não ser das demissões”.
Roberto --  “Aqui está o teu novo “job  description” . Se tiver alguma dúvida me procure. Ah, mais uma coisa, você continua na mesma sala, viu? Isso vai evitar fofocas.”
Missão cumprida e bem executada. A paz invade o coração de Roberto, orgulhoso de sua boa ação embora tendo cometido um pequeno arranhão na fidelidade que deve à sua empresa.
Passaram-se os tempos, mas não muitos. O trabalho seguia, em plena harmonia, perseguindo seu objetivo primordial: cortar custos. Um dia nosso generoso Diretor Técnico é chamado ao gabinete do Conselho Administrativo. É recebido por Mafalda, Presidente.  Curto e grosso:
Mafalda – “Senhor Roberto! Fique sabendo que a minha empresa não está aqui para sustentar vadios. O Arthur veio aqui me dizer que está se sentindo ocioso no lugar que ocupa. Que diabo você andou fazendo?
Perplexo, Roberto começa a gaguejar:
Roberto – “Mas, como? ... O Arthur?...  O que acc...acccc...aconteceu?  O Arthur...  a  reestrut.... eu fiz uma reorg ... Ele disse isso?”
Mafalda – “Eu não quero explicações. Eu quero soluções! E rápido. Pode sair”.
 Roberto saiu cabisbaixo, trêmulo, tropeçando nos próprios sapatos. Não podia acreditar. O Arthur! Oito filhos. Chegando aos cinquenta anos.  Fazendo pano. Aquela anta! Roberto chegou na sua sala e desabou na cadeira. Estava lívido, de uma lividez transparente pela qual se podia ver a sua alma sofredora. Mandou chamar o Arthur.
Roberto --  “Arthur... Arthur... como é possível ... você Arthur... você ocioso... Foi dizer isso para minha chefe, Arthur?  Que está ocioso, Arthur? Foi dizer isso pro patrão, Arthur?.  Ficou maluco?  Com cinquenta anos? Com oito filhos,... onde você está com a cabeça, Arthur,... fazer  uma besteira dessas  Arthur, o errado aqui sou eu, você não tinha nada a ver, .... nem a hierarquia você respeitou....  Arthur, que diabo você fez, Arthur ......  Onde já se viu ?!!!  Oito filhos!!!!  Fala, Arthur! ...  Fala, ... fala... fala, ... abre a  boca,  infeliz! ...  ... ...
  Arthur? ... Arthur?.....  Você está demitido ... Arthuuuuur.”