10 fevereiro 2016

Quando eu ficar bem velhinho


Roubei do brilhante sociólogo  ROBERTO  DAMATTA  o título “Quando eu for bem velhinho”, de sua crônica publicada  no jornal de hoje. Porque acabo de sair de uma experiência  que , por pouco,  não me tira a oportunidade de vir a ficar  “bem velhinho”.  Vi a morte de frente.
Dentro de um ônibus de turismo, no meio da madrugada, eu me encontrei  mergulhando num precipício esperando apenas achatar-me lá no fundo.
Depois de uma freada violenta, o ônibus começou a derrapar de um lado para o outro da estrada e, entrando numa curva, levantou as rodas do lado esquerdo e, aí, percebi que ia capotar. O resto eu já podia imaginar. Lembro-me, com horror, dos gritos desesperados dentro do veículo. Alguns passageiros, que não haviam colocado o cinto de segurança, foram jogados para fora de suas poltronas. A poucos graus do ângulo fatal o ônibus recuperou o seu equilíbrio. Descobrir a causa do acidente foi fácil. Fiz as contas: o motorista estava dirigindo há, exatamente, 15 horas contínuas.

Assim que clareou o dia,  comecei a providenciar o nosso retorno por avião. Eu estava com minha filha e duas netas. Continuar naquele ônibus seria um suicídio e um assassinato.
Não vou mencionar o nome da empresa criminosa. Não quero que se pense que pretendo tirar proveito da mesma, até porque nenhuma compensação pecuniária poderá apagar a sensação de estar diante da morte.

Por outro lado, esta experiência  levou-me a refletir sobre como eu gostaria de ser quando ficar “bem velhinho”.
 Primeiro quero ampliar meu círculo de amigos. São eles que nos mantêm jovens. Claro que, para isso, é preciso encontrar pessoas, velhas ou jovens, que tenham paciência com velhos, principalmente quando desatam a contar suas experiências  passadas, como eu estou fazendo agora. Sabem o que dizia Gabriel Garcia Marques? Ele escreveu: “Sabemos que estamos ficando velhos quando, em uma roda de bate-papo, para cada assunto tratado, nós temos um exemplo para servir de ilustração”.

Não quero usar bengala  e sair espantando mosquitos à minha frente. Se não puder usar as minhas próprias pernas para caminhar, ainda que tropegamente, ficarei em casa.  Nela  usarei um pedaço de bambu que cortei do meu bambuzal em  Friburgo e nele me apoiarei curtindo as gratas recordações que me trará.

Não quero usar cadeira de rodas para ir às ruas. Nunca vi nada mais triste do que um velhinho desfilando numa calçada numa cadeira empurrada por uma criatura que antigamente se chamava mucama, a face estática descolorida pelo tempo, o olhar fixo, vítreo, fitando o infinito, como uma imagem congelada na tela de uma televisão enguiçada. E a pobre mucama, de cara sofrida, cabeça inclinada para  a frente, medindo os passos para não sacudir o seu conduzido,  mais parece estar cumprindo uma pena imposta pela Santa Inquisição.

Não quero ser mantido vivo com a ajuda de aparelhos.  Não quero estar em uma UTI, o que quer que essas letras signifiquem, ligado  a uma bomba que insufla ar sintético nos meus pulmões. Não quero estar plugado a uma mangueira espetada no rabo ou onde quer que seja, uma cloaca que deveria envergonhar a ciência médica. Não quero que me deem comida através de sondas. Como vou poder sentir o sabor do vinho que me chega ao estômago através de vias clandestinas?  Vá lá que eu seja obrigado a comer papinhas e banana amassada desde que seja com minha própria boca.
Se eu não puder me alimentar com os meios que Deus me deu, deixai-me quieto. E eu me deixarei esvair como se esvai a espuma que coroa  as ondas na praia.

E quando tudo estiver terminado, quando não houver mais eu, coloquem esta minha roupagem sobre as chamas para que o fogo renovador me conduza ao espaço sideral onde possa iniciar vida nova e retribuir tudo o que fizeram por mim, dar-lhes tudo o que lhes neguei nesta vida por ignorância, preguiça, incapacidade ou simples avareza.

N.B. Se quiser rir um pouco leia “A Pena da Morte”. Clique no nº 52 da lista aqui ao lado.


Quero pedir desculpas aos meus parcos leitores. Terminei a crônica sugerindo que lessem o poeminha "A Pena da Morte" para rir um pouco. Mas esqueci que eu havia mudado a última estrofe. Vou reproduzir a versão original e, com ela, espero que riais. Se não rirdes, avisai-me, pois quem vai rir sou eu. Nem que seja da conjugação do verbo.


Aqui jaz o bobão que achava
Que em sonho morreria
E bobão ele era
Porque morto já estava e não sabia