30 maio 2015

Cem mil livros

“Livraria Leonardo da Vinci anuncia fechamento”

A notícia de quinta feira, 29 de Maio de 2015, ocupava meia página do jornal. O negócio tornara-se comercialmente inviável. Na matéria, os jornalistas Mateus Campos e Maurício Meireles fizeram um excelente retrospecto da atividade da Livraria destacando a importância de sua participação no mundo literário. Entre outros aspectos, ressaltaram:

“Nas estantes da Leonardo Da Vinci ainda repousam livros cujo preço original era cotado em pesetas espanholas e francos, da França, por exemplo. As obras, que fazem parte de um estoque estimado em mais de cem mil exemplares, foram compradas antes do surgimento do euro, em 2002 e esperam até hoje para serem vendidas.”

Cem mil livros!
Nunca fui um frequentador assíduo da Leonardo. De vez em quando passava por lá e comprava um par de livros, principalmente quando procurava algo em italiano ou espanhol. Conheci Dona Giovanna, que me encantava mais pelo seu sotaque do que pelo conteúdo de nossas conversas posto que, por  timidez minha, falávamos pouco: tem, não tem, é bom, não é, tá esgotado, vai chegar...  Era assim.
Mas ocorreu que, certa ocasião, eu precisei visitar a Da Vinci durante cinco dias corridos e desta vez eu não comprei nada. Apenas percorria os corredores das salas, cabeça baixa, meditativo. Fazia uma pausa, olhava para o alto, e prosseguia. Eu precisava saber quantos livros havia dentro da Livraria. Isso foi no mês de Maio de 2011. Obviamente, eu não podia perguntar à Dona Giovanna qual era o estoque de sua livraria. Então contei os livros. E constatei que, dentro daquelas salas, haveria, pelo menos, um total de 86.400 livros. Agora o jornal nos informa que há, hoje, “um estoque estimado em mais de cem mil exemplares.”  Uma diferença de 13.600 livros, isto é, apenas 13,6 por cento.
Errei feio? Não. Principalmente se levarmos em conta o tempo atual - Maio de 2015 - e o tempo da minha contagem  - Maio de 2011 - um lapso de quatro anos, durante os quais a livraria continuou crescendo, ampliando seu estoque.
Bem, acho que chegou a hora de explicar  por que eu fui contar os livros nas prateleiras da Livraria  Da Vinci e como foi que  consegui chegar ao fabuloso número de 86.400.

No dia 14 de Maio de 2011 eu publiquei  no “Memórias de Um Vago” uma crônica com o título de  “ESCREVER”. Nesses dias eu passava por uma angústia muito grande, debatendo-me entre o escrever e o ler, a palavra e a imagem, o papel e a tela do computador e, acreditem, entre a carta de papel com selo do correio e o e-mail. Para atenuar meu sofrimento, resolvi discutir o assunto com o Severino Mandacaru, meu amigo das horas incertas. Se quiser conhecer o teor da conversa, o meu incauto leitor poderá clicar na crônica  “Escrever” , que tem o número 61 no Índice que se encontra na coluna esquerda da página de abertura do blog. Para os mais ocupados  transcrevo apenas a parte que explica a metodologia que usei para encontrar o número que buscava.
Poderá ser útil a livreiros, bibliófilos  e curiosos. E para quem gosta de aventuras.

Eu disse para o Severino:
“-- Você certamente conhece a Livraria Leonardo Da Vinci. Sabe quantos livros tem lá dentro?
-- Não, por que? Você sabe?
-- Sei. Eu contei.
-- Impossível, você está maluco. Ninguém conseguiria fazer isso. Você perguntou pra Dona Giovanna?
-- Não. Não me atrevi, seria indiscreto. ela poderia achar que sou um concorrente... sei lá... mas eu calculei. São 86.400 livros, com pequena margem de erro.
-- Nem vou lhe perguntar como você conseguiu fazer isso.
-- Veja bem, vou simplificar:  a livraria tem 5 salas com estantes que vão até o teto. Cada estante é dividida em compartimentos, todos iguais, graças ao bom senso do marceneiro. Achar o total de compartimentos foi fácil. Contei o numero de livros que existe em cada compartimento e chequei, por amostragem, com alguns outros, pois nem todos os livros têm a mesma espessura. Assim cheguei a um valor médio representativo, com boa margem de segurança, de todo o conjunto. Os compartimentos que armazenam dicionários e livros de arte, que são notadamente mais grossos, foram tratados em separado e receberam um coeficiente de correção. No piso da loja também há livros, distribuídos em gôndolas, cuja quantidade pode ser facilmente calculada tomando-se o número de livros por metro quadrado. O meu passo é bastante regular e com ele posso medir qualquer distancia com erro menor do que dois por cento. Determinada a área de cada sala tem-se o total de livros, com o cuidado, naturalmente, de descontar o espaço ocupado pelas vias de acesso, escadas, mesas e cadeiras da administração, coletores de lixo, e onde ...”


A cidade inteira está pranteando o desenlace da Leonardo da Vinci. Hoje, 1º  de Junho, foi a vez do Joaquim Ferreira dos Santos chorá-la:
 “Em mais uma pá de cal...    ... a cidade sem letras sepulta a Leonardo da Vinci na caverna onde já estava moribunda, nas catacumbas insalubres do Marquês do  Herval” diz Joaquim, na sua brilhante crônica do Segundo Caderno.

Para mim é mais uma alma que se vai, deixando-me um remorso por não tê-la amado mais, não ter-lhe sido mais assíduo, não tê-la assistido melhor, como merecia. 
Alivia-me a culpa ter-lhe contado os livros.