27 novembro 2014

Ruim de vida



Raimundo Nonato mal completou quinze anos de idade. Acorda cedo. Naquela manhã fresca e úmida percorre  a longa alameda que o separa da escola,  serpenteando por entre os oitizeiros. Da calçada coberta pelos frutos maduros,  levanta-se o  cheiro dos oitis, inundando o ar. É um cheiro acre, pungente, desagradável.  Causa-lhe náuseas. Vez por outra Raimundo interrompe sua caminhada para ouvir o canto de um pássaro, contemplar as gotas de orvalho que ainda cobrem as folhas nos jardins ou examinar uma teia de aranha que se destaca no contra luz do sol.
Raimundo sente-se angustiado. Por mais bucólica que fosse aquela manhã não consegue liberar-se das inquietações que o perseguem. Não vislumbra um  futuro.  Estará aprendendo alguma coisa? Como será o amanhã?  E  se não houver amanhã?  E esse maldito cheiro de oitis que não termina nunca?

A rotina era estafante: chegada na escola, ginástica, café da manhã, aulas práticas nas oficinas, almoço, aulas teóricas durante toda a tarde. E a volta pela longa alameda com o cheiro nauseabundo dos oitis.
Hoje é sábado, não haverá aula. Raimundo não sabe por que resolveu  fazer a caminhada. Quando se deu conta já estava no meio da alameda chutando oitis, marcando gols nos buracos das grades que cercam os jardins. Consolou-se. Seria interessante observar o velho prédio da escola pendurado sobre a margem do rio; as barcaças carregadas de areia, rio abaixo, levadas pela correnteza e rio acima, vazias, empurradas pelo varejão, a longa vara de pau que o remador apoia no ombro, caminhando pelo costado da embarcação. Com o prédio deserto, o cenário era de paz. Mas Raimundo sente-se intranquilo. Olha para o lado oposto. A poucos metros, dali, bem colado ao rio, encontra-se um velho tambor de caldeira que não teria mais do que um metro de diâmetro, sombreado por uma tamarineira.
Ali mora Zé da Cuia, um indigente que vive de magras contribuições em troca de pequenos serviços. Não aceita esmolas. Alimenta-se na escola com as sobras do café da manhã e do almoço.
Zé estava pescando, como fazia quase todas as manhãs. Raimundo puxa conversa.
- E aí, Zé, pescando?
- Não, rezando.
-Ahâ...
Raimundo resolve passar para o outro lado e atravessa por cima da vara de pescar que se encontra apoiada na terra.
- Não faça isso! Você não sabe que dá azar? Espanta os peixes.
- Desculpa. Você já comeu hoje?
- Já. Guardei de ontem. Tinha munguzá e tapioca.
Estimulado pelo interesse do rapaz, Zé da Cuia começou a falar um pouco de sua vida. Falou das dificuldades pelas quais tinha passado, do sofrimento e das agruras que o atormentaram por muito tempo.
- Não tinha onde dormir. Comida  eu catava nos baldes  que os restaurantes jogavam fora. Pra me vestir catava roupa no lixo...
Zé fez um longo silêncio, fitando o chão. E concluiu:
- É, meu amigo, eu já andei ruim de vida.
Ruim de vida!
 As palavras não saiam da cabeça de Raimundo. “O sofrimento relativo”.
Zé da Cuia vivia o sofrimento relativo. Portanto, havia alcançado a “felicidade relativa”. Nossa insatisfação cresce continuamente. Ansiamos ter. E quanto mais temos, mais queremos. E assim vamos ao encontro da infelicidade.
Raimundo Nonato contemplou demoradamente o rio. As barcaças de areia desciam levadas pela corrente e subiam levadas pelo homem. Despediu-se de Zé da Cuia com um beijo na testa.
E percorrendo o caminho de volta pela longa alameda, saltitava  por entre as árvores aspirando o aroma delicioso e inebriante dos oitis maduros.


05 novembro 2014

Y a Chile nos fuimos

O turista desavisado que chegasse ao Vale do Curicó encontraria uma paisagem árida, sem cor, sem atrações. Em pouco tempo descobriria que estava enganado. Na terra aparentemente seca e áspera extensos vinhedos se multiplicam, simétricos, intermináveis, mimetizados em sua cor pardacenta. O nosso turista mudaria de opinião ao contemplar os troncos retorcidos e secos das videiras centenárias. Aí ele descobriria a mágica que se esconde nessa paisagem aparentemente monótona  que produz  um dos maiores milagres da natureza: o vinho.
E era de vinho que iríamos tratar. Conduzidos por dois “chiflados” aventureiros, chegamos ao Vale em uma linda e ensolarada manhã. O nome do hotel - Raices - completava o quadro. Uma construção baixa, de estilo colonial, sem escadas, elevadores, corredores sem fim. Atendidos por funcionários eficientes e discretos, o hotel nos proporcionava o ambiente descontraído e discreto para que nos pudéssemos concentrar naquilo que realmente contava: o vinho. A primeira visita foi à Casa Silva, vinícola que produz vinhos premiados em muita exposições internacionais. O responsável por esse sucesso é o enólogo Mario Geisse, que, junto com os filhos Daniel e Rodrigo, fundou a Cave Geisse, na Serra Gaúcha, que também vem conquistando prêmios no exterior. Na degustação, além dos famosos tintos, destacamos um vinho branco: o Sauvignon Gris. No vinhedo desta uva, próximo ao prédio principal, uma placa nos informa:

“Sauvignon Gris  -  Ano do plantio: 1912 -  Espaçamento:1,0 x 1,5 m

No dia seguinte visitamos a Miguel Torres, prestigiosa vinícola que produz o Manso de Velazco e o Superunda, onde recebemos um tratamento especial e, no almoço, fomos brindados com uma original “cozinha participativa”. Fomos divididos em grupos de três e cada  grupo, sob o comando de um chef,  observou a elaboração de um prato. Em seguida cada participante elaborava , por sua vez, o mesmo prato o qual seguiria para ser servido no almoço. Tudo sincronizado à perfeição, uma insuperável aula de gastronomia ministrada pelos chefs da Miguel Torres. Vale destacar que o restaurante da Miguel Torres é considerado  o melhor do país, dentro de uma vinícola.
Sucederam-se as visitas à Baron Philippe Rotschild, produtora do famoso Escudo Rojo,  emblema da tradicional família de banqueiros e, em seguida, à Almaviva, outro ponto alto da nossa expedição. Em ambas fomos recebidos com muito carinho e atenção, o que fez com que nos sentíssemos velhos amigos. Em todas elas as degustações foram generosas e a exposição dos processos de produção sempre franca e totalmente aberta, o que mostra o prestígio e a confiança de que a corajosa Flajur Turismo desfruta junto às vinícolas chilenas.
Do ponto de vista gastronômico – recreativo,  a expedição nos reservaria um programa surpresa que, posso dizer foi um dos mais emocionantes que passei em toda a minha vida. Em Santiago: “Um dia na Cordilheira” A longa subida até três mil metros de altura, por uma estrada tortuosa, entre picos e abismos, pontilhada por placas de neve que ainda resistiam ao abrasador sol do quase verão, foi de tirar o fôlego. Literalmente. Porque todos sabem que nessa altura  sobre o nível do mar, qualquer movimento do corpo equivale a um esforço dobrado. Chegados ao topo, a visão dos penhascos oferecia um espetáculo deslumbrante, que conduzia a um estado contemplativo. Fazia-se mister encontrar um lugar adequado para repousar a carcaça já combalida pelas atividades precedentes e, não menos importante, fazer chegar ao estômago algo que o tranquilizasse posto que o relógio, de há muito, havia batido as 2 horas da tarde. Enquanto aguardava, meu olhar percorria  a gigantesca montanha, com suas escarpas íngremes e pedregosas, cheias de mistério. Não soprava mais o vento gelado do inverno. O sol era abrasador. Pensativo, veio-me à memória a canção que costumava ouvir em outras épocas:

                    Que sabes de cordillera
                    Si tu nasciste tan lejos
                    Hay que conocer la piedra
                    Que corona el ventisquero
                    Hay que recorrer callando
                    Los atajos del silencio
                    Y cortar por las orillas
                    De los lagos cumbrereños...
                    Mi padre anduvo su vida
                    Por entre piedras y cerros...

O tempo passava.  Eu estava esfomeado.  A vista ficando turva.  Por momentos pensei em ficar ali e deixar-me petrificar  entre as placas de neve que ainda resistiam em algum flanco da encosta. A canção produzira seu efeito. Consciente, recuperei-me e me lembrei de que aquilo era somente um passeio. Um passeio? Foi o que pensei mas logo descobriria que aquilo não era simplesmente um passeio.
Depois de alguma caminhada chegamos, finalmente, a um patamar esculpido na encosta onde três ou quatro abrigos ofereciam mesinhas e bancos talhados na pedra. À volta tudo era sol. Sentei-me num deles e fechei os olhos com a intenção de repousar. Mais uma vez o tempo passou. Voltei à mim e mal pude acreditar no que via. Em um abrigo próximo,  a dupla de  “chiflados”  montava o seu templo gastronômico. Um fogão, extraído das entranhas da terra, apareceu por encanto sobre a mesinha de pedra. Sobre ele, uma enorme panela. Facas, tábuas e apetrechos diversos saiam de bornais nunca antes vistos. Polvos, lulas, centollas e mariscos de todo o tipo eram limpos e esmiuçados pelas facas habilmente brandidas. Um aroma de mar inebriava o ambiente ... a três mil metros de altura!

Logo começaram a chegar à nossa mesa as primeiras iguarias, acompanhadas do inseparável companheiro: o vinho. Eu espiava tudo, sem acreditar. Jurandyr  agitava os braços brandindo as armas, esticava o pescoço, gritava ordens, virava sobre os calcanhares, executando uma coreografia diabólica. Terminada a pajelança, declarou  pronto o panelão,  para que fosse servido. Eu, restaurado moral e fisicamente,
recuperei a confiança na humanidade.

Nova experiência eletrizante nos aguardava ainda em Santiago. Chegamos ao hotel, uma construção convencional sem maiores atrativos se não fosse o seu ar majestático e sua decoração  no melhor estilo hindu. Situado em pleno centro, o que significa estar próximo à Plaza  de Armas e ao Palacio de La Moneda. Tratava-se,  portanto, de uma ótima localização para políticos e homens de negócios. Aparte o fascínio exercido pela decoração hindu, à qual se somava o delicioso cheiro de  curry que exalava do seu restaurante, não dava para entender a sua localização. Soube depois que a escolha resultara de uma falha ocorrida durante a operação de magia que pautava o processo decisório. Não se sabe como, a fada que deveria dar o toque final com sua varinha mágica foi substituída por uma bruxa má.
E deu no que deu.

Entrei no meu quarto. Era minúsculo e, portanto, acolhedor. E foi suficiente para abrigar as malas debaixo da cama e colocar o relógio e o celular sobre a mesinha de cabeceira. Outra coisa boa: não havia, no banheiro, aqueles malditos mini sabonetes que só fazem atrapalhar. No seu lugar um lindo provedor de sabão líquido colado junto à pia. Ademais, fomos regalados pela  “Fla Jur Turismo”  com um rico sabonete de tamanho normal, acompanhado de uma linda saboneteira. Quem estava sozinho no quarto, obviamente recebeu meio sabonete , prova de que a Flajur aplica seus recursos  de maneira consciente.
Procurei uma janela para ver o que havia à minha volta. Eu tinha notado que, existia, bem na frente do hotel, um movimentadíssimo  ponto de ônibus e estava curioso para ver como a galera santiagueña se virava na hora do “rush”.
Encontrei a janela, era bem grande, fechada por uma cortina, dessas de correr, vertical. Levantei a cortina, surgiu uma grande parede de vidro e, do outro lado ... surpresa! uma linda sala de estar, com mesinhas, poltronas e quadros na parede. Entusiasmado com a engenhosidade do arquiteto, procurei o caminho para chegar a ela mas não o encontrei. Achei bom pois, assim, eu não precisaria dividir com ninguém a linda paisagem que eu contemplava da minha janela. Orgulhoso com as minhas descobertas, chamei a atenção da minha esposa para a majestade do nosso hotel e mostrei o nosso quarto como exemplo bem sucedido de minimalismo, tão de moda em nossos dias.

“In vino veritas” , queridos amigos. Este não faltou. Foram sete dias alegres, bem vividos, onde aprendemos muito e de tudo, onde aprendemos a cultivar a convivência, o relacionamento fraternal, praticando a tolerância e a solidariedade, o respeito às ideias conflitantes, a criar a verdadeira amizade, incondicional. Parabéns a todos. Parabéns ao Fla, ao Jur, e à “Fla Jur Turismo”. Parabéns às Vinícolas, às videiras  e seus frutos e .... ao Vinho!

Lembrete: “ Se você busca aventuras procure a “Fla Jur Turismo”