25 março 2014

"Si vas para Chile ...

... te ruego viajero,
que digas a ella
que de amor me muero”

Esta é uma canção chilena. Nela, um apaixonado descreve a casa e o lugar onde morava e chora o amor que lá deixou. O lugar é Las Condes, hoje um moderno e próspero bairro de Santiago, mas no seu tempo apenas um povoado. Em certo momento a canção diz:

“Campesinos y gentes del pueblo
Te saldrán al encuentro viajero
Y verás como quierem em Chile
Al amigo cuando es forastero”

A descrição do lugar é comovente, faz com que a gente se sinta parte da paisagem e viva a dor do apaixonado que lá deixou sua amada. A estrofe de boas vindas, original em seus termos, prepara o forasteiro para uma acolhida calorosa e, mais do que tudo, fraterna.

Com seus vinhos, seu pisco, suas empanadas, seus damascos e cerejas, com a riqueza dos mariscos do Pacífico,  e de suas  canções dolentes sobre lagos e cordilheiras, o Chile é um lugar encantador. Aqui, eu pouco tenho a dizer. Quem pode falar é o seu maior poeta, Pablo Neruda, que escreveu uma ode ao vinho. É um poema longo, por isso, vou transcrever somente alguns versos. Depois de alguns copos vocês se animarão a procurar o resto.




Oda al Vino

                                Pablo Neruda

 VINO color de día,
vino color de noche,vino con pies de púrpura
 o sangre de topacio,
vino,
estrellado hijo
de la tierra,
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo...

...Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre oscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico delfruto.







19 março 2014

Harmonia no Vale

Apaixonei-me, à primeira vista, pelo tablet da Mary. Comecei a vigiar o tablet ao perceber que ele não recebia de sua proprietária os cuidados que sua função exigia. Abandonado ora aqui, ora ali, eu sempre o via tristonho, sem brilho, sem vida. Minha preocupação continuou comigo.

A viagem pelo Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, me reservaria  encantamentos inesquecíveis. Eu já tinha andado por lá varias vezes mas nunca havia, de fato, percorrido aquelas colinas e penetrado na alma daquela gente que, com ternura e sabedoria, transforma uva em vinho. Desta vez foi diferente. Juntei-me a um grupo de doze aventureiros organizado por dois malucos: Jurandyr e Flamínio, dois magos da culinária, sim, aqueles mesmos que promovem o “Mãos na Massa”, uma espécie de programa sócio cultural dedicado à gastronomia, no Mercado Central de Nova Friburgo.

Durante cinco dias percorremos aquelas terras em busca de novas sensações conhecendo suas uvas, seus vinhos, seus toneis e seus cardápios elaborados dentro da inconfundível tradição dos colonizadores vênetos.  Flamínio e Jurandyr conseguiram manter aceso o nosso espírito e ativo o nosso corpo, desde a alvorada até o cair da noite, durante todo o tempo que durou a longa jornada de visita às principais vinícolas da região.

Na Casa Valduga, uma empresa grande e bem organizada, encontramos uma recepção calorosa que nos surpreendeu. Andrei, seu enólogo, discorreu sobre as diferentes castas de uva plantadas em seus vinhedos e os respectivos métodos de produção. Durante a degustação aprendemos a distinguir a delicadeza de um pinot noir, a suavidade de um merlot, a potencia do cabernet e a robustez do tannat.

Não longe dali encontramos o mestre Antonio Dal Pizzol, proprietário de uma vinícola que tem coração de gente. Com uma proposta inovadora a Vinícola Dal Pizzol cultiva um acervo denominado “Vinhedo do Mundo” com mais de 500 variedades de uva destinadas à pesquisa. Oferece, também, à visitação, um pequeno museu onde exibe prensas, filtros, dornas, balanças e todo o tipo de apetrecho usados pelos colonizadores no início da produção de vinho na Serra Gaúcha. Numa curiosa adega adaptada em um antigo forno de cerâmica, mestre Antonio armazena centenas de garrafas de safras inimagináveis, muitas com mais de vinte anos. Generosamente, Antonio nos brindou com a degustação de um cabernet sauvignon safra 1995, que se apresentou surpreendentemente vivo. Durante o jantar que nos ofereceu, montado sobre um cardápio tipicamente vêneto, invadimos a cozinha e fomos ajudar a mexer a polenta.

Visitamos a  Cave Geisse, um modelo perfeito de empreendimento que une a pesquisa a atividade produtiva, fundada pelo enólogo chileno Mario Geisse. Geisse veio para o Brasil e estabeleceu-se como diretor de uma grande vinícola. Ao conhecer  a Serra Gaúcha percebeu que algumas colinas ofereciam as condições ideais para a cultura de determinadas cepas. Com sua experiência e muita dedicação começou a produzir vinhos em caráter experimental. Incorporando aos poucos novas áreas de cultivo e depois de muita pesquisa, Mario Geisse, com sua família, fundou a Cave Geisse concentrando-se na produção de espumantes. Hoje produz vinhos de altíssima qualidade nessa categoria. O seu Geisse 98, por exemplo, foi classificado entre os “20 mais” pela crítica Jancis Robinson no principal evento mundial de vinho que se raliza em Hong Kong.  

No edifício principal da Cave fomos recebidos por seu filho Daniel, também  enólogo, que nos guiou durante a visita às instalações e dirigiu o longo ritual de degustações. E aí tivemos uma grande surpresa: Nossos guias Flamínio e Jurandyr, cobriram-se com os paramentos de chef e ocuparam a cozinha da Cave para montar nosso almoço, um delicioso e variado cardápio que dispensou os três pratos típicos da tradição vêneta, exaustivamente degustados nos dias anteriores: a sopa de cappelletti, a polenta e o creme de sagu. Este, com vinho.
Flamínio apresentou sua renomada “pasta fresca”, desta vez com molho de salvia. Jurandyr esmerou-se nas entradas: iniciou com um cornetto de salmão cru temperado com que, só ele sabe. Uma delícia que só parei de comer quando percebi que a bandeja estava vazia. Foi a primeira vez que consegui harmonizar peixe cru com vinho (até então eu só combinava peixe cru com saquê). Usei um Cave Geisse Nature – 12,5%.
Seguiu-se um desfile de defumados que o próprio Jurandyr produz em seu santuário de Nova Friburgo, o que nos proporcionou um novo festival de harmonizações. Seguiram-se os pratos. A cozinha foi invadida. Todos perguntavam tudo. Jurandyr, sempre solícito e paciente, entoava alegremente explicações e conselhos. Vinho não faltou. Faltou tempo, porque a hora já era tarda e devíamos marchar para uma nova ventura.

Meia hora serpenteando pelas colinas por entre lindas casas coloniais e vinhedos, e alcançamos a Pizzato Vinhas e Vinhos. Localizada a noroeste de Bento Gonçalves, a Vinícola Pizzato desenvolveu uma diversificada linha de vinhos de alta qualidade. Com vinhedos espalhados pelo Vale dos Vinhedos e o Planalto Gaúcho, a Pizzato oferece uma ampla gama de vinhos produzidos a partir das cepas merlot, cabernet, tannat, alicante, egiodola, pinot noir e chardonnay. No seu catálogo constam também cinco variedades de espumantes (um deles produzido com a uva pinot noir)  e três cortes de tintos cuidadosamente selecionados.

E aqui nossos guias nos surpreenderam mais uma vez com uma nova e incrível experiência: preparar nosso próprio vinho. Alfredo e Carolina orientaram os trabalhos.  A turma foi dividida em três grupos. Cada grupo deveria montar o seu blend a partir de quatro cepas fornecidas pela vinícola. O resultado seria avaliado por um júri de enólogos e someliers e os vinhos seriam classificados conforme os pontos recebidos. Deveria ser desenhado um rótulo e feita uma descrição do conceito adotado. Foi um sucesso. Cada grupo comemorou seu resultado com se tivesse sido o vencedor e, orgulhosos, fomos todos para a mesa deleitar-se com um jantar de cinco pratos. Vida longa à Pizzato e aos nossos dois malucos!

Estão de parabéns promotores e participantes.
Os promotores, pela originalidade do empreendimento; pela perfeita organização das atividades cuja intensidade não permitiu sequer um minuto de tédio; pela escolha dos anfitriões e suas calorosas recepções; pelo cuidado que tiveram na escolha dos trajetos, feitos em veículos confortáveis, com pontualidade impecável e conduzidos por profissional competente, atencioso e ainda por cima bem humorado; pela qualidade da hospedagem, elegante mas sem exageros; pelo que deram de si transmitindo conhecimentos, revelando experiências pessoais e cuidando dos distraídos mesmo aqueles que não tinham tablet.
Os participantes, pelo comportamento educado, sempre alegres, pontuais, criativos nas brincadeiras, solidários nas necessidades e atenciosos  com os mais avançados na idade.

Na manhã de quarta feira, dia do regresso, já pairava no ar um clima de nostalgia. Daqueles dias de feliz convívio, do prazer sensual pela estética da paisagem, dos sabores, dos aromas, da inebriante experiência proporcionada pelas harmonizações dos vinhos - e das pessoas.

Continuei vigiando o tablet. Não queria que ele se perdesse. Quanto à Mary, não sei. Desapareceu afundada na mesma poltrona em que chegou, levando consigo os demais companheiros. E deixando uma profunda sensação de vazio.