06 agosto 2013

Carta aos colegas



 
Queridos colegas, irmãos nas letras:
Escrever, para nós, tornou-se penoso. É o que concluo a julgar pelo volume do material postado nas últimas semanas. Será inócuo perscrutar nas mentes o que nos reduziu a isso. Mas não será inútil tecer (é o meu ofício) algumas considerações em torno do impasse.

 Agora entendo melhor a inquietação do Severino Mandacaru quando, debatendo-se em seu conflito sobre o desequilíbrio entre escrita e leitura, teve um surto de demência. Ele chegou à conclusão de que não haveria leitores suficientes para absorver tudo o que se publica. Lembram-se que, no seu desvario, chegou a propor que se calculasse a quantidade de livros existentes nas livrarias de todo o mundo, num determinado momento - seria um corte no tempo - e se comparasse com o número de leitores disponíveis. Deu início ao seu projeto contando os volumes de  uma livraria considerada padrão e chegou à expressiva cifra de 86.400 livros, contados nas prateleiras. Isso numa livraria, numa cidade, num só país. Estender a pesquisa a nível universal seria um trabalho inimaginável, tanto pela magnitude como pelo primitivismo da metodologia, e isto o enlouqueceu. Aparentemente.

 Severino não estava tão maluco assim. Porque um dia depois que ele postou seu devaneio (“Escrever” – 8 de Agosto de 2010), uma segunda feira, o suplemento “Digital”  do Globo publicou a seguinte  matéria do Google:

“Todo o bibliófilo  que se preza já alimentou, em algum momento da vida, a inocente esperança de ler todos os livros do mundo”. Em seguida  o artigo informa que, de acordo com uma pesquisa realizada, o mundo tem hoje 129.864.880 livros editados. Se multiplicarmos esse número pela quantidade de livros impressos em cada edição teremos, com algumas abstrações, o número que Severino buscava.

 Depois disto não posso deixar de voltar ao assunto que ocupou nossas cabeças - e nossos corações - no “Depois da Oficina”  quando, no auge da criatividade e inflados pelos elogios de professores e colegas, cogitamos de publicar nosso livro de crônicas bancando, nós mesmos,  a edição.  Não seria difícil... existem pequenas editoras que cuidam disso... os custos são baixos... e por aí vai. Ou foi.

 O escritor italiano Umberto Eco  (“O Nome da Rosa”  - quem não leu o livro ou viu o filme?) tratou desse assunto com muita propriedade. Podemos discordar dele mas não podemos ignorá-lo. Vejamos o que escreveu: 

“Nos anos 70 comecei a me ocupar dos autores que chamei de  Quarta  Dimensão.  A denominação vinha do fato de que eu definia como Primeira Dimensão a da obra em forma de manuscrito  e, como Segunda Dimensão, a da obra publicada por um editor sério. Calculando como Terceira Dimensão a do sucesso (visto que muitos autores, até excelentes, permanecem segregados na Segunda, destinados à picotadora ou aos “remind me later”) eis que identifiquei a Quarta, aquela dos autores “auto-financiados”, em geral publicados por editoras especializadas em explorar esses talentos justamente incompreendidos.

Mas, em suma, ao fazer aquela pesquisa, cheguei a recolher uma pequena biblioteca de autores editados à própria custa que hoje, trinta anos depois, tem todas as condições para entrar no mercado do antiquariato”.

 Em que pese o quadro desanimador que se apresenta ao escritor principiante, acho oportuno avançar um pouco mais na discussão do tema e me permito fazê-lo com o beneplácito que se concede aos leigos. O fato de um texto não lograr êxito junto aos editores não deve constituir motivo de desânimo. Vocês devem se lembrar do que a crítica disse da peça Um Elefante no Caos, de Millor  Fernandes. Pois bem, Umberto Eco colecionou uma lista enorme de críticas recebidas por escritores desconhecidos e que se tornariam famosos um dia. Encontra-se em “Memória Vegetal” – Record, 2010:

 Em 1851, Moby Dick foi recusado na Inglaterra com a seguinte avaliação: “Não achamos que podemos funcionar no mercado da literatura para jovens. É longo, de estilo antiquado e cremos que não merece a reputação de que parece gozar”.

Flaubert, em 1856, viu repelida sua Madame Bovary com esta carta:  “Cavalheiro, o senhor sepultou seu romance num cúmulo de detalhes que são bem desenhados mas totalmente supérfluos”.

 De Emily Dickinson, o primeiro manuscrito de poemas foi rejeitado em 1862 com:  “Dúvida. As rimas estão todas erradas”.

Quanto ao nosso século, eis alguns exemplos:

Colette, Claudine na Escola,1900: “Não conseguiria vender nem dez exemplares”

 Henry James, A Fonte Sagrada, 1901: “Decididamente, dá nos nervos... ilegível. O sentido do esforço torna-se exasperante ao máximo grau. Não há história”.

 James Joyce, Dedalus, 1916: “ No final do livro, tudo se desintegra. Tanto a escrita quanto as idéias explodem em fragmentos meio úmidos como polvorim molhado”.

 Francis Scott Fitzgerald, Este Lado do Paraíso, 1920: “A historia não chega a uma conclusão. Nem o caráter, nem a carreira do protagonista parecem chegar a um ponto que justifique o final. Em suma, parece que a história não se conclui”.

 Faulkner, Santuário, 1931: “Meu Deus, meu Deus, não podemos publicá-lo. Acabaremos todos na prisão”.

 George Orwell, 1945, A Revolução dos Bichos: “ Impossível vender histórias de animais nos USA”.

A lista segue, extensa, interessante, mas seria cansativo continuá-la.  O que não se pode  deixar de ler é o parágrafo com que Umberto Eco encerra o seu texto  “A    Loucura dos Especialistas” :

“O que nos impressiona, nessas histórias, é que se trata de avaliações contemporâneas, feitas no calor dos fatos. Como para nos avisar que convém deixar as obras de arte em repouso, como os vinhos” .

 Queridos colegas, coragem! Não há porque chorar se nos estraçalham. Provavelmente o merecemos. E, nesta caso, choremos. De qualquer modo, nos dias de hoje tudo é mais fácil. A rede dos Especialistas expandiu-se de tal maneira que é possível diluir as magoas que eles provocam bem como precaver-se dos excessos laudatórios com os quais, raramente,  é verdade, somos brindados. Se você receber elogios alegre-se e vá em frente. Se você receber uma avaliação condenando o seu trabalho, alegre-se também, procure entendê-la, e continue trabalhando. Porque o que dói mesmo  é não receber nada. A indiferença dói mais do que a ofensa. E aí, não sei o que dizer. Você pode ser apenas um gênio incompreendido ou um grande talento, que precisa deixar suas obras descansando. “Como os vinhos”.

 

05 agosto 2013

O Presente de Casamento

 
O  espetáculo das Cataratas de Sete Quedas, visto do céu, era deslumbrante. Eu estava dentro de um DC3 que levava somente dez passageiros. O avião fazia voos rasantes tão baixos que a água, borbulhando ao  despencar no abismo, respingava nas janelas. Dividido entre o medo e o deslumbramento, eu mal conseguia respirar. É impossível descrever aquelas cenas, como é impossível esquecê-las. E pensar que as Sete Quedas foram varridas do mapa.
Era o ano de 1963. Eu queimava a mufla  no “Programa de Reequipamento  da Indústria Têxtil do Nordeste”  implantado pelo ministro Celso Furtado na recém criada Sudene. Fui indicado para fazer um curso de “Técnico em Desenvolvimento Econômico”, promovido pela Cepal - Comissão Econômica para a América Latina, um organismo das Nações Unidas - e ministrado no Rio de Janeiro. Terminado o curso, dez alunos foram selecionados para conhecerem o estado do Paraná. O Governo do Estado queria divulgar o seu potencial econômico para atrair investimentos e encontrara naqueles técnicos  os veículos adequados. E assim visitamos indústrias, cafezais, plantações de mate e, o mais importante, culturas de algodão ainda incipientes e em fase de experimentação. Visitamos também jazidas de xisto betuminoso de onde a Petrobras esperava , curiosamente, extrair petróleo.
Os meus colegas de curso vinham de diversos Estados e nem todos eram economistas. Havia engenheiros, sociólogos e também um jornalista, a figura  mais notável de todo o grupo. A ele devo a minha reeducação na cidade do Rio de Janeiro de onde eu havia saído muitos anos antes. Eduardo Antônio Alves era jornalista da Revista Visão, o semanário de opinião lido por todos os  executivos do país. Eduardo era do Rio de Janeiro, um modelo de carioca: sempre alegre, divertidíssimo, irreverente e brincalhão. Ele me dizia:
-- Galego, o que é que você está fazendo lá no Pernambuco? Você está perdendo tempo lá. Você tem que vir pra cá, rapaz. Você sabe comer de talher, sabe dar nó na gravata, tem tudo o que precisa pra trabalhar aqui. Olha pra mim, eu tenho um bom emprego, ganho bem. Eu trabalho com as duas armas mais poderosas que existem: o medo e a vaidade. Vem pra cá!
A viagem fluía alegre e descontraída, entrecortada por almoços de frango com polenta e vinho “dos colonos”. O vinho não era lá grande coisa, mas eu também não era.  Um dia  o Eduardo entrou no meu quarto, com ar sisudo:
--  Seu cabeça de bagre, vê se desgruda dessa agenda e presta atenção no que   acontece em volta.
--  O que é ?
--  Você não viu que a Dalva não tira os olhos de você? E você não faz nada?
Eu não havia notado. Dalva Regina era uma das melhores alunas do curso. Formada em Economia, preocupava-se com as desigualdades sociais e admirava o trabalho que vinha sendo feito pela Sudene.  Era filha de um almirante, presidente de um grande estaleiro, um enorme estaleiro. Eu conversava de vez em quando com ela  como se fosse uma extensão da aula, e sempre a respeito de assuntos relacionados com o desenvolvimento econômico.
--  Você está maluco, Eduardo, não vi nada disso.
--  E você está cego!  Deixa de ser bobo, rapaz.  Casa com a Dalva!
Comecei a prestar atenção. De fato havia qualquer coisa de significativo naqueles olhares. Era impossível permanecer indiferente.
Avaliei bem a situação e os meus sentimentos, e afastei qualquer possibilidade de envolvimento. Voltei ao meu frango com polenta e ao vinho vagabundo. Eduardo voltou à carga:
--  E aí, pau de arara? Você acordou?
Confessei-lhe que de fato havia notado os sinais de aproximação, mas que iria ficar longe.
--  Deixa de ser idiota!  Casa com a Dalva, rapaz, você vai ganhar um navio de presente de casamento!
A viagem chegou ao fim. No voo de regresso o pequeno avião tornou-se imenso para os dez passageiros. Cada um sentou-se em um banco, longe dos demais, em silêncio. Pareciam todos enternecidos com o fim da viagem e com os laços que se haviam formado durante aquele convívio. Sentei-me  também sozinho junto a uma janela, olhando as nuvens, pensativo. Dalva  chegou e sentou-se ao meu lado.
--  Gostou da viagem? Pena que foi curta. O que é que você vai fazer  amanhã?
-- Nada especial. Vou ficar dois ou três dias no Rio e voltar para Recife.
-- Posso lhe mostrar um pouco do Rio antes de você viajar?  Você  gostaria?
--  Gostaria!
--  Espero você  amanhã, lá em casa, às quatro da tarde.
Deu-me o endereço e voltou ao seu lugar.
Fui pontual. Quando cheguei  Dalva me esperava na varanda, sentada numa cadeira de balanço.
--  Você se incomoda se eu dirigir?
A  sua pergunta tinha motivos: estou falando de uma época em que as mulheres mal  começavam a dirigir automóveis.
Saímos. Ela atravessou o centro, chegou à Praça Saens Peña e tomou o caminho do Alto da Boa Vista. Ela sugeriu pararmos no Bar dos Esquilos. Lembro-me bem, ela pediu um whisky sour. Eu acompanhei. Continuamos a viagem com paradas na Vista Chinesa, na Mesa do Imperador, nas pequenas trilhas que serpenteavam pela mata.
Conversamos muito. Subdesenvolvimento, política externa, Cuba, Ligas Camponesas, imperialismo, dominação econômica, algodão versus fibras sintéticas. Ela nada  perguntou sobre a minha vida pessoal.
Havia pausas, quando nos fitávamos longamente, sem uma palavra.
Lá embaixo as luzes começaram a piscar, delineando o perfil da cidade. Começamos a descer em direção à Barra da Tijuca.
--  Você ainda tem dinheiro?
Novamente é preciso explicar: Naquela época nenhum cavalheiro permitiria que uma mulher pagasse uma conta. Eu me havia preparado.
--  Então vamos jantar.
Ao chegarmos na baixada  ela tomou a pequena ponte que leva ao restaurante da Ilha dos Pescadores.  Ali ficamos, lendo o cardápio,  sem pressa, recordando a viagem, rindo bastante e...  suspirando.
Eu estava sorvendo um gole do Pinot Grigio que ela mesma havia escolhido quando, por um  reflexo no copo, percebi que alguém se aproximava da nossa mesa:
--  Minha filha, você ...
-  Papai!
--  ... está aqui, e eu preocupado ...
--  Mas eu avisei a mamãe que ia sair e para onde ia. Ela não lhe falou?
-- Sim, sim, está certo, está tudo bem, tudo bem ...
Assustado, levantei-me de sobressalto e gaguejei:
--  Almirante, o senhor não quer sentar-se, jantar conosco?
-  Não, não, muito obrigado, meu filho, bom apetite, boa noite, boa noite...
E, educadamente, se foi. Dalva não fez o menor comentário. Continuou sorvendo seu vinho em pequenos  goles, intercalados por um olhar matreiro, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Para mim, acostumado com as normas severas que sempre pautaram o meu trabalho e a rígida disciplina imposta no convívio familiar, aquilo era inusitado. Por um momento eu me senti como se estivesse raptando a moça, mas logo me recuperei  e, considerando-me já íntimo do Almirante, continuamos a conversa com muita naturalidade. Eu sentia ternura na sua voz e  comecei a ficar abalado.
-- Não está tarde para você voltar? 
--  Quando é que você viaja?
--  Marquei para depois  de amanhã.
--  Você não pode ficar mais alguns dias?
--  Não posso, tenho trabalho. Gostaria muito.
--  Você vai me escrever, não vai?
--  Vou, sim.
Nunca escrevi. Na pele do Severino Mandacaru eu andava preocupado em melhorar as condições de trabalho nas fábricas do nordeste, tarefa da qual a gloriosa revolução de 64 me  liberaria, sem consultar-me. Indignado fui-me embora.
O tempo passou. Eu acabava de voltar do Chile e travava uma luta inglória para  readaptar-me à nova realidade do país. Caminhando,  de cabeça baixa,  pela Rua do Ouvidor,  ouço um grito vindo da outra calçada:
--  Spreafico!
Era o Eduardo, de braços escancarados, pronto  para me abraçar.
--  Que fim você levou, seu nordestino falsificado, onde é que você anda, quanto tempo!
-- Ah!,  estive no Chile, passei lá um tempão, casei, tenho dois filhos. E você, o que está fazendo?
--  Eu tenho uma editora.  Também casei. .. Adivinha com quem?
-  ?????
--  Com a Dalva!  Você não quis ... !
E soltou uma  gargalhada.
 
Nota: Todos os nomes são fictícios
 


02 agosto 2013

A Profanação

Vi  dois sutiãs de Imelda Marcos. Um branco e um preto. Foi numa fotografia, é verdade, mas ainda assim, pareceu-me estar cometendo uma profanação. Por mais ditador que tenha sido seu marido, acho que a mulher merece respeito. A foto foi tirada pelo jornalista Tiziano Terzani, que trabalhava para a revista alemã Der Spiegel. Ele cobria a queda do ditador das Filipinas e conta que Ferdinand Marcos abandonou o palácio presidencial, fugindo de helicóptero. O povo invadiu o palácio. Tiziano percorreu as dependências e foi parar no dormitório de Imelda. Na época ela já se havia tornado famosa pela quantidade de sapatos e vestidos que colecionava. Não se falava de sutiãs mas também havia montanhas deles.

Quando trabalhava para a UNIDO fui designado para uma missão nas Filipinas. Eu deveria fazer um levantamento do setor têxtil para definir sua posição no contexto dos países da Asean, comunidade composta por cinco países asiáticos existente na época. Ferdinand Marcos ainda era o presidente. Foi durante esse trabalho que pude constatar o descalabro em que se encontrava o setor têxtil daquele país. O ditador controlava uma empresa de importação de tecidos a qual concorria com a indústria local. Mas esse era um problema político e o meu trabalho era no campo técnico.

Naquela época pesquisava-se a utilização da fibra da bananeira para a fabricação de tecidos. Experiências eram feitas em praticamente todos os países produtores da planta, sem grande sucesso. Nas Filipinas havia-se avançado bastante. Visitei a fábrica que obtivera os primeiros resultados práticos e produzira alguns metros de tecido. Com eles, fui informado, seria feito um vestido para Imelda Marcos.
Mas a profanação não me sai da cabeça.