06 agosto 2013

Carta aos colegas



 
Queridos colegas, irmãos nas letras:
Escrever, para nós, tornou-se penoso. É o que concluo a julgar pelo volume do material postado nas últimas semanas. Será inócuo perscrutar nas mentes o que nos reduziu a isso. Mas não será inútil tecer (é o meu ofício) algumas considerações em torno do impasse.

 Agora entendo melhor a inquietação do Severino Mandacaru quando, debatendo-se em seu conflito sobre o desequilíbrio entre escrita e leitura, teve um surto de demência. Ele chegou à conclusão de que não haveria leitores suficientes para absorver tudo o que se publica. Lembram-se que, no seu desvario, chegou a propor que se calculasse a quantidade de livros existentes nas livrarias de todo o mundo, num determinado momento - seria um corte no tempo - e se comparasse com o número de leitores disponíveis. Deu início ao seu projeto contando os volumes de  uma livraria considerada padrão e chegou à expressiva cifra de 86.400 livros, contados nas prateleiras. Isso numa livraria, numa cidade, num só país. Estender a pesquisa a nível universal seria um trabalho inimaginável, tanto pela magnitude como pelo primitivismo da metodologia, e isto o enlouqueceu. Aparentemente.

 Severino não estava tão maluco assim. Porque um dia depois que ele postou seu devaneio (“Escrever” – 8 de Agosto de 2010), uma segunda feira, o suplemento “Digital”  do Globo publicou a seguinte  matéria do Google:

“Todo o bibliófilo  que se preza já alimentou, em algum momento da vida, a inocente esperança de ler todos os livros do mundo”. Em seguida  o artigo informa que, de acordo com uma pesquisa realizada, o mundo tem hoje 129.864.880 livros editados. Se multiplicarmos esse número pela quantidade de livros impressos em cada edição teremos, com algumas abstrações, o número que Severino buscava.

 Depois disto não posso deixar de voltar ao assunto que ocupou nossas cabeças - e nossos corações - no “Depois da Oficina”  quando, no auge da criatividade e inflados pelos elogios de professores e colegas, cogitamos de publicar nosso livro de crônicas bancando, nós mesmos,  a edição.  Não seria difícil... existem pequenas editoras que cuidam disso... os custos são baixos... e por aí vai. Ou foi.

 O escritor italiano Umberto Eco  (“O Nome da Rosa”  - quem não leu o livro ou viu o filme?) tratou desse assunto com muita propriedade. Podemos discordar dele mas não podemos ignorá-lo. Vejamos o que escreveu: 

“Nos anos 70 comecei a me ocupar dos autores que chamei de  Quarta  Dimensão.  A denominação vinha do fato de que eu definia como Primeira Dimensão a da obra em forma de manuscrito  e, como Segunda Dimensão, a da obra publicada por um editor sério. Calculando como Terceira Dimensão a do sucesso (visto que muitos autores, até excelentes, permanecem segregados na Segunda, destinados à picotadora ou aos “remind me later”) eis que identifiquei a Quarta, aquela dos autores “auto-financiados”, em geral publicados por editoras especializadas em explorar esses talentos justamente incompreendidos.

Mas, em suma, ao fazer aquela pesquisa, cheguei a recolher uma pequena biblioteca de autores editados à própria custa que hoje, trinta anos depois, tem todas as condições para entrar no mercado do antiquariato”.

 Em que pese o quadro desanimador que se apresenta ao escritor principiante, acho oportuno avançar um pouco mais na discussão do tema e me permito fazê-lo com o beneplácito que se concede aos leigos. O fato de um texto não lograr êxito junto aos editores não deve constituir motivo de desânimo. Vocês devem se lembrar do que a crítica disse da peça Um Elefante no Caos, de Millor  Fernandes. Pois bem, Umberto Eco colecionou uma lista enorme de críticas recebidas por escritores desconhecidos e que se tornariam famosos um dia. Encontra-se em “Memória Vegetal” – Record, 2010:

 Em 1851, Moby Dick foi recusado na Inglaterra com a seguinte avaliação: “Não achamos que podemos funcionar no mercado da literatura para jovens. É longo, de estilo antiquado e cremos que não merece a reputação de que parece gozar”.

Flaubert, em 1856, viu repelida sua Madame Bovary com esta carta:  “Cavalheiro, o senhor sepultou seu romance num cúmulo de detalhes que são bem desenhados mas totalmente supérfluos”.

 De Emily Dickinson, o primeiro manuscrito de poemas foi rejeitado em 1862 com:  “Dúvida. As rimas estão todas erradas”.

Quanto ao nosso século, eis alguns exemplos:

Colette, Claudine na Escola,1900: “Não conseguiria vender nem dez exemplares”

 Henry James, A Fonte Sagrada, 1901: “Decididamente, dá nos nervos... ilegível. O sentido do esforço torna-se exasperante ao máximo grau. Não há história”.

 James Joyce, Dedalus, 1916: “ No final do livro, tudo se desintegra. Tanto a escrita quanto as idéias explodem em fragmentos meio úmidos como polvorim molhado”.

 Francis Scott Fitzgerald, Este Lado do Paraíso, 1920: “A historia não chega a uma conclusão. Nem o caráter, nem a carreira do protagonista parecem chegar a um ponto que justifique o final. Em suma, parece que a história não se conclui”.

 Faulkner, Santuário, 1931: “Meu Deus, meu Deus, não podemos publicá-lo. Acabaremos todos na prisão”.

 George Orwell, 1945, A Revolução dos Bichos: “ Impossível vender histórias de animais nos USA”.

A lista segue, extensa, interessante, mas seria cansativo continuá-la.  O que não se pode  deixar de ler é o parágrafo com que Umberto Eco encerra o seu texto  “A    Loucura dos Especialistas” :

“O que nos impressiona, nessas histórias, é que se trata de avaliações contemporâneas, feitas no calor dos fatos. Como para nos avisar que convém deixar as obras de arte em repouso, como os vinhos” .

 Queridos colegas, coragem! Não há porque chorar se nos estraçalham. Provavelmente o merecemos. E, nesta caso, choremos. De qualquer modo, nos dias de hoje tudo é mais fácil. A rede dos Especialistas expandiu-se de tal maneira que é possível diluir as magoas que eles provocam bem como precaver-se dos excessos laudatórios com os quais, raramente,  é verdade, somos brindados. Se você receber elogios alegre-se e vá em frente. Se você receber uma avaliação condenando o seu trabalho, alegre-se também, procure entendê-la, e continue trabalhando. Porque o que dói mesmo  é não receber nada. A indiferença dói mais do que a ofensa. E aí, não sei o que dizer. Você pode ser apenas um gênio incompreendido ou um grande talento, que precisa deixar suas obras descansando. “Como os vinhos”.

 

05 agosto 2013

O Presente de Casamento

 
O  espetáculo das Cataratas de Sete Quedas, visto do céu, era deslumbrante. Eu estava dentro de um DC3 que levava somente dez passageiros. O avião fazia voos rasantes tão baixos que a água, borbulhando ao  despencar no abismo, respingava nas janelas. Dividido entre o medo e o deslumbramento, eu mal conseguia respirar. É impossível descrever aquelas cenas, como é impossível esquecê-las. E pensar que as Sete Quedas foram varridas do mapa.
Era o ano de 1963. Eu queimava a mufla  no “Programa de Reequipamento  da Indústria Têxtil do Nordeste”  implantado pelo ministro Celso Furtado na recém criada Sudene. Fui indicado para fazer um curso de “Técnico em Desenvolvimento Econômico”, promovido pela Cepal - Comissão Econômica para a América Latina, um organismo das Nações Unidas - e ministrado no Rio de Janeiro. Terminado o curso, dez alunos foram selecionados para conhecerem o estado do Paraná. O Governo do Estado queria divulgar o seu potencial econômico para atrair investimentos e encontrara naqueles técnicos  os veículos adequados. E assim visitamos indústrias, cafezais, plantações de mate e, o mais importante, culturas de algodão ainda incipientes e em fase de experimentação. Visitamos também jazidas de xisto betuminoso de onde a Petrobras esperava , curiosamente, extrair petróleo.
Os meus colegas de curso vinham de diversos Estados e nem todos eram economistas. Havia engenheiros, sociólogos e também um jornalista, a figura  mais notável de todo o grupo. A ele devo a minha reeducação na cidade do Rio de Janeiro de onde eu havia saído muitos anos antes. Eduardo Antônio Alves era jornalista da Revista Visão, o semanário de opinião lido por todos os  executivos do país. Eduardo era do Rio de Janeiro, um modelo de carioca: sempre alegre, divertidíssimo, irreverente e brincalhão. Ele me dizia:
-- Galego, o que é que você está fazendo lá no Pernambuco? Você está perdendo tempo lá. Você tem que vir pra cá, rapaz. Você sabe comer de talher, sabe dar nó na gravata, tem tudo o que precisa pra trabalhar aqui. Olha pra mim, eu tenho um bom emprego, ganho bem. Eu trabalho com as duas armas mais poderosas que existem: o medo e a vaidade. Vem pra cá!
A viagem fluía alegre e descontraída, entrecortada por almoços de frango com polenta e vinho “dos colonos”. O vinho não era lá grande coisa, mas eu também não era.  Um dia  o Eduardo entrou no meu quarto, com ar sisudo:
--  Seu cabeça de bagre, vê se desgruda dessa agenda e presta atenção no que   acontece em volta.
--  O que é ?
--  Você não viu que a Dalva não tira os olhos de você? E você não faz nada?
Eu não havia notado. Dalva Regina era uma das melhores alunas do curso. Formada em Economia, preocupava-se com as desigualdades sociais e admirava o trabalho que vinha sendo feito pela Sudene.  Era filha de um almirante, presidente de um grande estaleiro, um enorme estaleiro. Eu conversava de vez em quando com ela  como se fosse uma extensão da aula, e sempre a respeito de assuntos relacionados com o desenvolvimento econômico.
--  Você está maluco, Eduardo, não vi nada disso.
--  E você está cego!  Deixa de ser bobo, rapaz.  Casa com a Dalva!
Comecei a prestar atenção. De fato havia qualquer coisa de significativo naqueles olhares. Era impossível permanecer indiferente.
Avaliei bem a situação e os meus sentimentos, e afastei qualquer possibilidade de envolvimento. Voltei ao meu frango com polenta e ao vinho vagabundo. Eduardo voltou à carga:
--  E aí, pau de arara? Você acordou?
Confessei-lhe que de fato havia notado os sinais de aproximação, mas que iria ficar longe.
--  Deixa de ser idiota!  Casa com a Dalva, rapaz, você vai ganhar um navio de presente de casamento!
A viagem chegou ao fim. No voo de regresso o pequeno avião tornou-se imenso para os dez passageiros. Cada um sentou-se em um banco, longe dos demais, em silêncio. Pareciam todos enternecidos com o fim da viagem e com os laços que se haviam formado durante aquele convívio. Sentei-me  também sozinho junto a uma janela, olhando as nuvens, pensativo. Dalva  chegou e sentou-se ao meu lado.
--  Gostou da viagem? Pena que foi curta. O que é que você vai fazer  amanhã?
-- Nada especial. Vou ficar dois ou três dias no Rio e voltar para Recife.
-- Posso lhe mostrar um pouco do Rio antes de você viajar?  Você  gostaria?
--  Gostaria!
--  Espero você  amanhã, lá em casa, às quatro da tarde.
Deu-me o endereço e voltou ao seu lugar.
Fui pontual. Quando cheguei  Dalva me esperava na varanda, sentada numa cadeira de balanço.
--  Você se incomoda se eu dirigir?
A  sua pergunta tinha motivos: estou falando de uma época em que as mulheres mal  começavam a dirigir automóveis.
Saímos. Ela atravessou o centro, chegou à Praça Saens Peña e tomou o caminho do Alto da Boa Vista. Ela sugeriu pararmos no Bar dos Esquilos. Lembro-me bem, ela pediu um whisky sour. Eu acompanhei. Continuamos a viagem com paradas na Vista Chinesa, na Mesa do Imperador, nas pequenas trilhas que serpenteavam pela mata.
Conversamos muito. Subdesenvolvimento, política externa, Cuba, Ligas Camponesas, imperialismo, dominação econômica, algodão versus fibras sintéticas. Ela nada  perguntou sobre a minha vida pessoal.
Havia pausas, quando nos fitávamos longamente, sem uma palavra.
Lá embaixo as luzes começaram a piscar, delineando o perfil da cidade. Começamos a descer em direção à Barra da Tijuca.
--  Você ainda tem dinheiro?
Novamente é preciso explicar: Naquela época nenhum cavalheiro permitiria que uma mulher pagasse uma conta. Eu me havia preparado.
--  Então vamos jantar.
Ao chegarmos na baixada  ela tomou a pequena ponte que leva ao restaurante da Ilha dos Pescadores.  Ali ficamos, lendo o cardápio,  sem pressa, recordando a viagem, rindo bastante e...  suspirando.
Eu estava sorvendo um gole do Pinot Grigio que ela mesma havia escolhido quando, por um  reflexo no copo, percebi que alguém se aproximava da nossa mesa:
--  Minha filha, você ...
-  Papai!
--  ... está aqui, e eu preocupado ...
--  Mas eu avisei a mamãe que ia sair e para onde ia. Ela não lhe falou?
-- Sim, sim, está certo, está tudo bem, tudo bem ...
Assustado, levantei-me de sobressalto e gaguejei:
--  Almirante, o senhor não quer sentar-se, jantar conosco?
-  Não, não, muito obrigado, meu filho, bom apetite, boa noite, boa noite...
E, educadamente, se foi. Dalva não fez o menor comentário. Continuou sorvendo seu vinho em pequenos  goles, intercalados por um olhar matreiro, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Para mim, acostumado com as normas severas que sempre pautaram o meu trabalho e a rígida disciplina imposta no convívio familiar, aquilo era inusitado. Por um momento eu me senti como se estivesse raptando a moça, mas logo me recuperei  e, considerando-me já íntimo do Almirante, continuamos a conversa com muita naturalidade. Eu sentia ternura na sua voz e  comecei a ficar abalado.
-- Não está tarde para você voltar? 
--  Quando é que você viaja?
--  Marquei para depois  de amanhã.
--  Você não pode ficar mais alguns dias?
--  Não posso, tenho trabalho. Gostaria muito.
--  Você vai me escrever, não vai?
--  Vou, sim.
Nunca escrevi. Na pele do Severino Mandacaru eu andava preocupado em melhorar as condições de trabalho nas fábricas do nordeste, tarefa da qual a gloriosa revolução de 64 me  liberaria, sem consultar-me. Indignado fui-me embora.
O tempo passou. Eu acabava de voltar do Chile e travava uma luta inglória para  readaptar-me à nova realidade do país. Caminhando,  de cabeça baixa,  pela Rua do Ouvidor,  ouço um grito vindo da outra calçada:
--  Spreafico!
Era o Eduardo, de braços escancarados, pronto  para me abraçar.
--  Que fim você levou, seu nordestino falsificado, onde é que você anda, quanto tempo!
-- Ah!,  estive no Chile, passei lá um tempão, casei, tenho dois filhos. E você, o que está fazendo?
--  Eu tenho uma editora.  Também casei. .. Adivinha com quem?
-  ?????
--  Com a Dalva!  Você não quis ... !
E soltou uma  gargalhada.
 
Nota: Todos os nomes são fictícios
 


02 agosto 2013

A Profanação

Vi  dois sutiãs de Imelda Marcos. Um branco e um preto. Foi numa fotografia, é verdade, mas ainda assim, pareceu-me estar cometendo uma profanação. Por mais ditador que tenha sido seu marido, acho que a mulher merece respeito. A foto foi tirada pelo jornalista Tiziano Terzani, que trabalhava para a revista alemã Der Spiegel. Ele cobria a queda do ditador das Filipinas e conta que Ferdinand Marcos abandonou o palácio presidencial, fugindo de helicóptero. O povo invadiu o palácio. Tiziano percorreu as dependências e foi parar no dormitório de Imelda. Na época ela já se havia tornado famosa pela quantidade de sapatos e vestidos que colecionava. Não se falava de sutiãs mas também havia montanhas deles.

Quando trabalhava para a UNIDO fui designado para uma missão nas Filipinas. Eu deveria fazer um levantamento do setor têxtil para definir sua posição no contexto dos países da Asean, comunidade composta por cinco países asiáticos existente na época. Ferdinand Marcos ainda era o presidente. Foi durante esse trabalho que pude constatar o descalabro em que se encontrava o setor têxtil daquele país. O ditador controlava uma empresa de importação de tecidos a qual concorria com a indústria local. Mas esse era um problema político e o meu trabalho era no campo técnico.

Naquela época pesquisava-se a utilização da fibra da bananeira para a fabricação de tecidos. Experiências eram feitas em praticamente todos os países produtores da planta, sem grande sucesso. Nas Filipinas havia-se avançado bastante. Visitei a fábrica que obtivera os primeiros resultados práticos e produzira alguns metros de tecido. Com eles, fui informado, seria feito um vestido para Imelda Marcos.
Mas a profanação não me sai da cabeça.


15 junho 2013

O Cheiro dos Oitis

Na manhã úmida de Junho, o cheiro dos oitis se eleva do chão, invade o espaço e ocupa o dia. Intenso e pungente afeta os sentidos, embriaga. Na longa alameda os oitizeiros  perfilados desprendem seus frutos maduros e atapetam o chão. É a Rua Manoel Borba. São seis horas da manhã. Um menino de doze anos percorre a longa via até alcançar a Praça do Derby onde tem sua escola.* O cheiro dos oitis o acompanha. Ali faz ginástica e toma café, preparando-se para um novo dia. Aulas pela manhã e prática nas oficinas à tarde. Sairá dali como “mecânico de máquinas”, uma redundância que significa torneiro mecânico, fresador e serralheiro. Era o ano de 1942.  Ele era o aluno mais feliz do mundo.

Não posso dizer que a Rua Manoel Borba continua a mesma. Recife não é mais o mesmo. Mas os oitizeiros ainda estão  lá embora não tenha visto frutos pelo chão. Talvez não seja a época, não sei, ou talvez estejam velhos demais para frutificar. Acontece também com a gente. Mas a maior parte das casas – naquele tempo eram mansões – também continua lá. O prédio da escola  também, milagrosamente intacto. A mesma entrada com portão de ferro, os mesmos ladrilhos no piso e a mesma árvore de tronco enorme no pátio de recreio agora transformado em repartição pública.

Beirando as paredes da escola desfilava, majestoso, o Rio Capibaribe. Poucos metros adiante uma gigantesca tamarineira e, logo depois, um tambor de caldeira abandonado que teria, aos olhos de hoje, um metro e meio de diâmetro. Ali morava o Zé da Cuia. Seria impróprio dizer que ele era um mendigo, pois não pedia esmolas. Todos os dias ele recolhia uma parte da comida que sobrava na cozinha da escola e isto lhe garantia a sobrevivência. Quase todas as tardes pescava.  Eu o ajudava a estender as linhas e abastecer as iscas. Um dia contou-me sua vida. Falou das dificuldades por que  já havia passado, do sofrimento e das agruras que o torturaram  por muito tempo. Agora não. Agora tinha casa e comida. Era um homem feliz. E para fechar o assunto concluiu, pensativo:
 -- É, meu amigo, eu já andei ruim de vida...

Ruim de vida! Aprendi muito com isso. As nossas insatisfações crescem continuamente. Ansiamos ter. Quanto mais temos, mais queremos. E assim vamos ao encontro da infelicidade. Hoje estou convencido de que existe alguma coisa que se pode chamar de "felicidade relativa". Se pensarmos bem sempre encontraremos  uma  felicidade relativa  com a qual podemos nos acomodar. Como o Zé da Cuia.
Não me censure, incauto leitor, se chegou até aqui esperando encontrar algo que o emocionasse e só encontrou palavras ocas. Nada tenho para acrescentar a não ser palavras e com estas me contento. Afinal, eu não tenho como lhe transmitir o cheiro dos oitis.

*A Escola Técnica do Recife pertencia à rede federal de escolas técnicas fundadas pelo presidente Nilo Peçanha. Oferecia dois tipos de cursos, ambos com oito horas de aula por dia: o curso básico, de quatro anos, que correspondia ao antigo ginasial e o curso técnico, de três anos, que correspondia ao curso científico. Foi transformada em  Instituto Tecnológico e ocupa hoje um grande prédio em outro local. No antigo prédio, que se conservou intacto até hoje, funciona a Fundação Joaquim Nabuco. Eu fiz, na Escola Técnica do Recife, o curso básico de Mecânica de Máquinas. Ao terminá-lo ganhei uma bolsa para fazer o curso técnico no Rio de Janeiro onde se acabava de criar a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil.


05 junho 2013

Quixaba !




Fazia tempo que eu não via o Severino Mandacaru. Depois, soube que ele havia embarcado. Achei estranho que viajasse assim, sem deixar palavra.
Tendo que ir ao Recife por alguns dias, resolvi procura-lo. Estava em Caruaru, voltando não sei de onde. Marquei com ele um encontro para comer umas tapiocas e trocarmos amarguras.
-- Então, Severino, que diabo você anda fazendo metido nesses sertões?
-- Você não sabe? Estou voltando de um lugar mágico. Uma cidadezinha do interior, contida em si mesma, altaneira, ignorada pela Coorte. Está dando um exemplo ao País em matéria de cultura e educação...
-- Não imagino qual seja. Tenho notado que Pernambuco está dando exemplos em matéria de turismo e no desenvolvimento industrial e...
É Quixaba, em pleno Sertão do Pajeú. Foi destaque no noticiário nacional por conta de suas escolas e agora seus alunos estão vencendo maratonas intelectuais em todo lugar do mundo.
-- Era lá que você estava este tempo todo?
-- Só um par de dias. É uma cidade pequena com seis mil e oitocentos habitantes comandados por um prefeito sereno e competente. Conta com três escolas estaduais de ensino fundamental e médio. Conta ainda com uma escola municipal que, como as outras, mereceu muitos destaques.

A Escola Tomé Francisco da Silva, no Distrito de  Lagoa da Cruz, conquistou, durante quatro anos consecutivos, o primeiro lugar em todo o Estado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB, obtendo notas que superaram as metas estabelecidas pela Secretaria Estadual de Educação. Em 2012 concorreu em nível nacional ao Prêmio Gestão Escolar e conquistou o primeiro lugar recebendo, por  isso, o título de  “ESCOLA REFERÊNCIA BRASIL”.
Não fazemos apenas diferente. Fazemos com muita paixão” diz Ivan Nunes, seu  gestor.

Visitei a Escola num dia de aula normal como qualquer outro. Quando se entra, a impressão que se tem é de que ali está se realizando uma grande festa. Tudo tem movimento. Nada é estático. As folhas das plantas se agitam no jardim bem cuidado e os livros parecem cantar. A alegria vibra e contamina o visitante. As paredes estão cobertas de cartazes coloridos incentivando à leitura, ao estudo, à dedicação, à solidariedade, ao amor. Não há espaços vazios. O semblante dos alunos, normalmente carrancudo em qualquer escola, ali resplandece refletindo alegria e felicidade.
Na Escola Solidônio Pereira de Carvalho, bem como na Escola Veríssima D’Arc e ainda na Escola Municipal São Miguel, no Sítio Gato, o ambiente é o mesmo: o entusiasmo, a competência e a dedicação se fazem presentes nos menores detalhes.  O  resultado se vê na expressão de alunos e professores.
Na Escola Solidônio Pereira tive a oportunidade de participar de um evento que estava em curso quando cheguei: Uma espécie de “Café Literário” no qual interagiam professores e alunos lendo e discutindo literatura num ambiente alegre e descontraído.
--  Pois é, meu caro Severino. E a gente ainda acha que conhece o Brasil.
--  Nessa  Escola também conheci uma senhorinha que, aos dezoito anos, foi nomeada a primeira professora de Quixaba. Na cidade ela é considerada a “pedra fundamental” de tudo isso. Casou-se com um galego com o qual aprendeu culinária italiana. Parece que faz sucesso lá no teu Rio de Janeiro.
--  A é? E ele, o que faz?
--  Ele faz tapioca e bolo de macaxeira.
--  Êta mundo bom!
--  Mas você não sabe da melhor, galego: Quixaba tem índice zero de dengue. Absolutamente zero.
--  Acredito.
--  E você não me pergunta como conseguiram isso?
--  Devem ter matado os mosquitos de tanto rir!
--  Teve uma Secretária Municipal de Saúde que ocupou o cargo durante 16 anos. Quando chegou a dengue ela encheu  uma bacia de larvas do mosquito e colocou-a na mesa do Prefeito, dizendo: - "Olhe isto! Temos que fazer alguma coisa”. O Prefeito respondeu de imediato: - “Pois faça logo!”
Aí descobriram que a piaba, o inocente peixinho que os matutos comem frito, era um valente devorador de mosquitos. Então encheram lagoas e riachos de piabas e proibiram a sua fritura. E nunca mais tiveram casos de dengue.
-- Fantástico, Severino. Preservaram uma espécie ameaçada e livraram a população do dengue. Posso dizer então que a piaba é o “animal sagrado” da região?
--  Como você disse, galego, este mundo é bom. Quando se sabe e se quer fazê-lo.


18 maio 2013

Kirin biru no Braziro



Eu estava acostumado com o nome da Schincariol na enorme placa da fábrica de cerveja por onde passo toda a vez que desço a Serra para ir ao Rio. Desta vez foi diferente. A placa havia dobrado de tamanho e dizia: Kirin Brasil. O nome Kirin me era familiar. No Japão eu me havia acostumado a pedir uma “kirin biru” nos restaurantes, quando queria tomar cerveja. “Biru” é a palavra criada no Japão para designar “cerveja”, uma adaptação da palavra “beer”, do inglês, tornada pronunciável para a articulação dos japoneses. O mesmo aconteceu com outras  tantas palavras: sorvete,  virou “aicicrimu” , como o verbo spinning ( fiar, em português) virou “supining” ... e...  bem, não resisto, vou dizer o meu nome em japonês:  “Ruigi Superafico” , com uma pausa  respiratória entre o u e o p.   E Brasil virou “Brasiro”.

Bem vinda,  Kirin biru ao nosso país!  E obrigado por me trazer tantas recordações do convívio que mantive com aquele povo educado e cordial, disciplinado, trabalhador, estudioso e rigorosamente pontual, com quem tanto aprendi.  Certa vez, numa viagem de trem que ia de Osaka para uma pequena cidade do interior, paramos numa estação intermediária. Haveria uma permanência de dez minutos, tempo suficiente para tomar uma cerveja no pequeno quiosque instalado no meio da plataforma. Duas velhinhas, com um sorriso perpétuo, atendiam. Quando você se afasta dos grandes centros, no Japão, dificilmente encontra alguém que fale inglês. Imagine duas velhinhas. Mas ali não havia problema.  Bastava dizer “kirin biru, kudasai” e elas entenderiam. De fato, imediatamente uma latinha de kirin foi colocada sobre o  balcão. Eu queria um copo e como o meu japonês não ia além do “uma kirin, por favor”, fiz o pedido em inglês. E depois em italiano e espanhol e francês, sem resultado. As duas se entreolhavam e riam sem parar,  balançando a cabeça, sem entender nada. Foi quando se aproximou em colega de trabalho brasileiro que viajava comigo:
- Por que diabos  você está gesticulando tanto, galego? 

- Nada,  eu só queria um copo.
E a velhinha, arregalando os olhos, escancarando  um riso de triunfo:
- Han? Copú? Hai, Hai !  – e tascou um copo no balcão.

Com suas conquistas no Oriente, Portugal introduziu muitas palavras, não só no Japão, como em outros países. Foi assim que pão virou “opan”,  e chá virou “ochá”. Na Indonésia sapato é “sapatú” e governo é “gubernúr”. Os espanhóis também deixaram sua marca. Nas Filipinas eu acompanhava a conversa de dois operários que falavam  em tegalog, o dialeto local, quando escuto:
- Que ura stá?
Interrompi a conversa e perguntei:
- Você  perguntou que horas são?
- Perfeitamente  -  foi a resposta.

Ainda no Japão, assisti a uma cena divertida e triste, numa loja de departamentos,  em Tókio.
Eu havia aprendido que na língua japonesa não existe a frase interrogativa  negativa. Portanto, se você perguntar: Você não tem medo de chuva, tem?  Em português a resposta usual seria : Não!  No Japão você ouvirá:  Sim! – ou seja, como você disse:  “Sim,  eu não tenho medo de chuva”.
Eu estava na fila do caixa. Um americano na minha frente entrega as mercadorias à mocinha e pergunta:
- “You have American Express, don’t you”?
- “Yes”  - responde a menina. (sim, eu não tenho American Express)
 O Americano entrega o cartão. A menina olha, balança a cabeça e diz:
- “No”.
- “ But you said you have American Express, diden’t you”? – novamente a interrogativa  negativa.
- “Yes” – responde a moça novamente. E o americano, já gritando:
- “Than process it, please”. A moça olha o americano, respira fundo, balança a cabeça e diz:
- “No”.
A cena que se seguiu foi patética. O americano enfurecido começa a gesticular, chamando o gerente. A moça chora. Os demais clientes olham atônitos, não entendem o motivo da fúria do americano. Ele ameaça chamar o consulado americano... ela está me fazendo de palhaço..., etc, etc... Tudo por causa de um “don’t you”.


07 maio 2013

Outra vez Saramago


Embarco num autocarro intercidades que me levará de Lisboa até Cerdeira de Côa, no Sabugal, centro do pais. Viajo com um propósito: entrevistar  Saramago, que vai  proferir uma conferência na “Associação de Municípios da Cova da Beira”.

Eu queria discutir   “A  Junta do Motor”, crônica  que ele escrevera em  em 2009, e que me havia tocado profundamente. Nela Saramago conta como, aos dezanove anos, trabalhava como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis:

- “Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas  de trabalho e de passeio... limpava carburadores, afinava válvulas, instalava calços e travões... , enfim, sob a precária proteção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel”

Sendo eu também mecânico, queria entender como é que ele, partindo de uma simples serralheria, havia chegado ao prêmio Nobel de literatura. Fiz-lhe perguntas que ele, pacientemente, escutou. Olhando-me intrigado, sem desconfiar, creio eu, das minhas aspirações, começou a falar, com ar complacente:

- “Não me leve tão a sério, meu jovem.  Aquilo foi um desabafo de momento, um arroubo que me levou a contar como, naquela tenra idade, fui parar dentro de uma oficina mecânica.  São lembranças de um tempo que  há muito se foi.  E são verdades. E por verdades que são,  ninguém as acredita. Conte  uma mentira e todos te crerão. Porque  vivemos hoje  num mundo de cegos. Cegos que se enxergam mas não se veem. Cegos que se apalpam mas não se sentem. Cegos que correm mas não se encontram, não saem do lugar.  Algum dia ainda vou escrever sobre isto, você vai ver.”

Eu o contemplava embevecido, sem saber o que dizer. Tentei manifestar-lhe o quanto havia gostado da sua palestra na véspera. Sem dar-me tempo de terminar, Saramago me interrompe e continua  seu raciocínio:

- “Decididamente este é um mundo de cegos. Veja esta cidadezinha. Um lugar tão pequeno e harmônico e, no entanto, cheio de ciúmes e rivalidades que acabam por  minar-lhe  a paz e o convívio social. Acabo de saber que o Senhor  Antonio Ruas está indignado por ver o que se passa na sua região. Segundo li, ele  preside a  AMBC – Associação dos Municípios da Cova da Beira  -  e é, também, editor da  Capéia Arraiana, a qual, segundo suas palavras: “procura defender os interesses da Região que vai do Sabugal e do Distrito da Guarda, movido à paixão pela Raia, pelas terras do Forcão, pelas Serras da Estrela, da Malcata e das Mesas, pelo Rio Côa e pelo povo valoroso que luta pelo futuro de uma região que alguns querem condenar ao fracasso”.
 Saramago guardou silêncio por algum tempo. Depois  continuou:
-“Veja bem: - um povo valoroso,  uma luta pelo futuro, e alguns que querem condenar tudo ao fracasso. É demais! Tão pouca gente e tanta briga. São problemas paroquiais, nada posso fazer.”

Suspirou, como quem retoma o fôlego. Depois olhou-me com  ar esperançoso e continuou:
-“Mas nem tudo está perdido, meu rapaz.  Descobri que aqui mesmo, em Cerdeira de Côa, são produzidos os melhores caracóis de Portugal. Já veem limpos e cozidos”.  Hesitou por um momento.  Deu meia volta e apanhou um papel que me entregou dizendo:
 -“Faça bom proveito, meu rapaz” – e antes que eu tivesse tempo de olhar o papel desapareceu da sala. 
Meti o papel no bolso e caminhei cabisbaixo  até o meu albergue. Pensativo, desabei, sobre uma poltrona. Abri o papel e encontrei esta

Caracoleta Deliciosa
Você vai precisar de: manteiga, alho, cebola, salsa, caldo de galinha, molho de soja e, obviamente, caracóis. ( Os da  Cerdeira de Côa, fornecidos pela Caracol Real, são os melhores). Basta refogar o alho e a cebola na manteiga, acrescentar os demais ingredientes e, por fim os caracóis.

Como te invejo, Saramago, como te invejo!