29 outubro 2012

Os grilos de cada um


Sobre um galho seco
Um passarinho canta
Que a vida se foi

Perdoem-me o haicai improvisado. Não pude evitá-lo pois ele representa o patético esforço do homem para restaurar a natureza que ele mesmo destruiu. Eu andava por uma estreita ruela no centro de Tókio acachapada  pelos enormes blocos de concreto e vidro que a circundavam. Caminhava  devagar, contrastando com os demais transeuntes. Era uma tarde ensolarada, embora o sol apenas se presumisse pela intensidade da luz. O céu visível era apenas uma nesga.
Em certo momento pareceu-me ouvir o canto de um pássaro. Ri do meu delírio e continuei a caminhada. O canto voltou, ligeiramente mais alto. Estiquei o pescoço à procura de um lugar para sentar-me. Desemboquei numa espécie de praça minúscula que mais parecia o fundo de um prédio.  Do chão de cimento, entre dois bancos de ferro, levantava-se o tronco seco de uma pequena árvore, o qual se dividia em três ou quatro ramos completamente pelados. Não havia uma só folha. Sobre o galho mais alto, um passarinho cantava.
Não demorei a perceber as duas caixinhas de som escamoteadas no cruzamento dos ramos e o tosco balançar de cabeça do pobre passarinho empalhado.

Os japoneses são um povo admirável e a eles devo a minha capacidade de introspecção e o pouco de equilíbrio emocional que ainda me resta. Com eles aprendi a tomar banho, a ouvir quando os outros falam e a fazer as coisas em espaços impossíveis. Com eles aprendi também a comer o que está disponível e provei coisas estranhas,  desde alimentos fermentados com odores inicialmente insuportáveis até bichinhos indecifráveis, fritos ou não, cujo aspecto ia do besouro ao louva-deus.

Depois de algumas idas e vindas de Tókio e Osaka, mas ainda um estreante na cultura japonesa, coube-me receber dois técnicos que viriam ao Rio para a discussão de um projeto. Ao completar duas semanas de trabalho exaustivo, na véspera de sua partida,  convidei-os para um jantar de despedida. Levei-os ao Fiorentina, que naquela época estava no Leme. O jantar foi longo e alegre, havia uma lua bonita, e decidimos caminhar um pouco pela beira da praia. Em certo momento, um deles parou e ficou contemplando longamente o mar. Pareceu-me vislumbrar, em seu semblante, uma certa nostalgia pela partida. Ele desceu até a areia, tirou um lenço do bolso e estendeu-o, aberto, no chão. Apanhou dois punhados de areia, colocou-os delicadamente no centro, amarrou as quatro pontas do lenço e voltou sem dizer uma palavra. Comovido com aquele gesto, eu não me contive:
--  Que bonito, você está levando um pouco da areia de Copacabana como lembrança do Brasil!
-- Não, – disse ele – é para a  minha criação de grilos.
-- Ah! Você cria grilos para comer, não é?
-- Não, não. É para ouvi-los cantar!

Meu impulso foi sair correndo e mergulhar no oceano. Para sempre.




04 outubro 2012

Uma jornada insólita


No dia 16 de Setembro, dois anos atrás, escrevi  “Madrugada insólita”, uma patética descrição das batalhas internas que travamos a cada dia na esperança de contornar os tortuosos caminhos que nos levam à senilidade. Naquela elocução eu concluía que devemos ignorar o prazo de validade que nos é atribuído quando nascemos e  que o melhor é continuar cumprindo as tarefas quotidianas no limite da nossa capacidade. Dois anos se seguiram com alguns sustos e muitas emoções.

Desta vez foi diferente. Eu me encontrava fora de casa, do outro lado do Atlântico, percorrendo os campos de trigo e girassol que dividem com a uva verdicchio as colinas agrícolas da região de Le Marche na costa italiana do Mar Adriático. Passei dias percorrendo as zonas rurais para observar o que fazem os camponeses nas suas cozinhas.  “Ainda é tempo de aprender alguma coisa”, pensei. A capacidade que tem a gente do campo para  improvisar e produzir coisas saborosas a partir de  ingredientes simples, sem receitas e implementos modernos, sempre me impressionou. Desprovidos de sofisticação e formalidade, seus jantares são sempre encontros festivos, alegres e divertidos.

Uma noite, depois de exaustivas e hilariantes discussões sobre a melhor forma de ralar o parmesão e determinar o ponto certo com que se deve grelhar a “Bistecca alla Fiorentina”, custei a adormecer. Em parte pelo cansaço e em parte porque descobri que havia vencido mais uma batalha mas não me havia preparado para os combates que viriam. Os dias  passavam e eu começava a sentir a nostalgia da partida. A viagem de volta foi cansativa, espremido naquelas gaiolas em que foram convertidas as outrora confortáveis poltronas da classe econômica, hoje o melhor exemplo da degradação humana.

Já em casa, deitado na cama em pleno dia para refazer-me da ausência de sono durante as doze horas que durou aquele voo  anestesiado por filmes idiotas, voltaram-me as reminiscências da infância. Revi o lago onde nasci  suas delicadas ondas acariciando os barcos e as amuradas das casas. As montanhas escarpadas que o circundam,  com seus castelos e igrejas de altas torres e sinos enormes ecoando pelos vales. Subindo a colina vi o riacho que movia os moinhos, um após o outro, suas rodas d’água murmurando uma ladainha melancólica como que se despedindo da vida. No topo do monte duas vaquinhas – apenas duas, porque tudo ali é pequenino – badalavam seus chocalhos e me olhavam nos olhos para me avisar que logo a neve chegaria e elas teriam de ser levadas para o estábulo. Uma construção de linhas harmoniosas, levantada em pedras esculpidas, formando arcos que se sustentam sem o apoio de colunas, fruto de uma arquitetura espontânea de fazer inveja aos ingegnieri de hoje. Lembrei-me do pátio onde meu tio ferrava os cavalos, de minha mãe sentada na cozinha  debulhando as ervilhas e eu deitado num banco de madeira, barriga pra cima, contemplando o teto em grandes arcos formando uma abóboda que, aos olhos daquela idade, parecia uma enorme catedral. E o cheiro da polenta que saia  do caldeirão de cobre pendurado na lareira  acesa atenuava  meus impulsos para sair e brincar na neve e mitigava meu estômago faminto.


Parei meu pensamento e sufoquei as lembranças. Olhei para mim mesmo. Eram emoções muito fortes para o meu combalido espírito. Eu me  debatia entre um passado bem vivido e um futuro incerto. Senti que a vida se esvaia. Essa paixão nostálgica me acabrunhava. O sentimentalismo não me conduziria a nada. Precisava reagir. Decidido a enfrentar com energia o porvir incerto pulei da cama, ergui a cabeça com altivez, empinei o nariz e fui consertar a descarga do banheiro que se havia desmantelado na véspera da viagem.