28 novembro 2011

A língua nossa de cada dia

“Senhor, senhor, te rogamos
E rogaremos sem fim
Que caiam raios de merda
No professor de latim”
                                              Belisario Betancur
                     

Belisario Betancur escreveu estes versos quando tinha 12 anos de idade. Pelo atrevimento, foi expulso da escola. Mais tarde ele se tornaria presidente da Colômbia. Quem narra esse detalhe na vida de Betancur é seu conterrâneo Gabriel Garcia Marquez, Prêmio Nobel de Literatura,  o qual, num artigo escrito em Fevereiro de 1993  para homenagear os 70 anos do presidente, explica assim a sua veia poética:
“Na verdade ele não foi um governante que amava a poesia mas um poeta a quem o destino impôs a penitência do poder.”

Nihil Obstat. Imprimatur
Hoje não se ensina mais latim nas escolas. As línguas foram se difundindo e misturando entre os povos, tornando-se cada vez  mais complexas. À cada geração adicionam-se novos termos produzidos pelas inovações tecnológicas, por novos costumes, e novas formas de relacionamento entre as pessoas. O latim, destinado a preservar a pureza das línguas que dele nasceram, tornou-se inócuo para o seu aprendizado.  Seu uso está reservado aos filólogos e , bucolicamente, a citações de máximas, anexins e provérbios latinos que até hoje não encontraram tradução convincente:
“Similia similabus curantur”  ... “Porta patens esto. Nullo clauderis honesto” ... “Naturam expellas furca” ... e por aí vai.

Nem por isso os esforços para preservar a pureza da língua desapareceram. Pelo menos na língua portuguesa, merecedora – ou vítima, não sei bem – de várias reformas ortográficas em menos de três décadas. De que serviram?  Para ilustrar essa questão proponho voltar a Garcia Marquez. Em conferência pronunciada no México em Abril de 1997 intitulada  “Garrafa ao mar para o Deus das palavras”  ele diz, na tradução de Eric Nepomuceno, o seguinte:
“... Nesse sentido eu me atreveria a sugerir, diante dessa platéia de sábios, que simplifiquemos a gramática antes que a gramática acabe nos simplificando. Humanizemos suas leis, aprendamos das línguas indígenas, às quais tanto devemos, o muito que ainda têm para nos ensinar e enriquecer, assimilemos logo – e bem – os neologismos técnicos e científicos antes que nos sejam infiltrados sem digerir, negociemos de bom coração os gerúndios bárbaros, com os quês endêmicos, o  dequeísmo parasitário, e devolvamos ao subjuntivo presente o esplendor de suas esdrúxulas. Vamos aposentar a ortografia, terror do ser humano desde o berço: enterremos os agás rupestres, assinemos um tratado de limites entre o gê e o jota e ponhamos mais uso da razão nos acentos escritos, que afinal de contas ninguém haverá de ler lagrima onde se diga lágrima, nem confundirá revolver com revólver. E o que dizer do nosso bê de burro e nosso vê de vaca, que os avós espanhóis nos trouxeram como se fossem dois e sempre sobra um?”

Estas são as sugestões de um Prêmio Nobel de Literatura a uma assembléia de sábios. Merecem reflexão. Consta que Portugal, depois de  assinar a última reforma ortográfica, não a adotou. Não há registro de que suas instituições de ensino ou os meios de comunicação tenham dado a mínima atenção ao acordo. De que serviu? A quem serviu?


Nova Friburgo, em 4 de Março de 2012
  Em  29 de Março de 2010 publiquei a crônica “Cada um com sua língua” no blog  Depois da Oficina, onde tentei brincar com as idiossincrasias da nossa língua e ali  me penitenciava por não acompanhar a reforma ortográfica recém implantada. Posteriormente, em 2 de Dezembro de 2010, transferi esta crônica para o Memórias de um Vago com o título de “Cada um com sua língua”.
Naquela época eu havia guardado um exemplar do jornal  “rascunho”, um jornal de crítica literária editado em Curitiba. É de Novembro de 2010 e nele se encontra um depoimento importante.  Acho oportuno  transcrevê-lo.

Carta de José Ignácio Coelho Mendes Neto ao jornal “rascunho” de Novembro de 2010:
“Nova Ortografia”
“Descobri recentemente o jornal Rascunho - - - . É o primeiro veículo de imprensa que vejo destacar sua recusa da reforma. Achei uma iniciativa sensacional, que deveria ter sido a norma entre todos os usuários da língua. Sou tradutor e revisor e repudio completamente a proposta de reforma ortográfica articulada por meia dúzia de indivíduos que se julgam no direito de alterar a língua apenas para venderem suas obras de atualização. É o maior crime contra a nossa cultura que já ocorreu em toda a história da língua portuguesa. Não só os motivos alegados são todos escusos, como a própria substância da reforma introduz cascatas de novos erros e incertezas. Um atentado como esse só poderia resultar da mentalidade burocrática que acha que a língua pode ser objeto de legislação. Em Portugal, que por razões incompreensíveis concordou com essa palhaçada, a reforma não foi adotada por nenhum órgão de comunicação, por nenhuma instituição de ensino, nem pública, nem privada, por nenhuma editora, nem pela população. Foi totalmente ignorada, como deveria  ser. Pelo menos vejo que a sua publicação foge à postura acéfala e acrítica que domina o nosso país. Estão de parabéns!
                                                     José Ignácio Coelho Mendes Neto



22 novembro 2011

Uma Droga Legal

Ópio, cocaína, heroína, maconha, crack, cola de sapateiro. Não conheço a lista completa das drogas letais que assolam a humanidade. Mas, por que a sociedade ainda não resolveu legalizá-las? Acabaria com a rede criminosa do tráfico que, em alguns lugares, constitui um poder paralelo muito mais forte do que o poder do governo. Alega-se que a liberação das drogas levaria a um consumo exacerbado, o que resultaria na morte de inocentes. Que inocentes? Os que hoje são assassinados pelas balas perdidas disparadas pelos próprios traficantes?

Não tenho preparo necessário para discutir a questão das drogas. Intelectuais de todo o mundo têm debatido o problema e, pelo que vejo, sem grande resultado. O que eu quero mostrar é que existe uma droga, perfeitamente legal, com a qual, até agora ninguém se preocupou: o crédito bancário. Ela não mata nem agride o corpo físico mas desarranja toda a sociedade afetando principalmente as classes mais pobres, mais vulneráveis à ação dos traficantes. Claro que é preciso distinguir entre o crédito à produção e o crédito ao consumidor, e é deste que estamos falando. Através de cartões de crédito, carnês, cheques pré-datados empréstimos bancários, notas promissórias, “caderneta” da quitanda, e fios de bigode, as pessoas vão comendo aquilo que ainda não produziram.

 Porque, quando alguém recebe, por antecipação, alguma coisa, com a promessa de que irá devolvê-la (pagá-la) mais tarde, com o fruto do seu trabalho,  está, na realidade, consumindo aquilo que ainda não produziu. Com um agravante. Ela terá que pagar uma remuneração por esse “favor” : os juros. Os juros são um bem metafísico que não tem contrapartida no sistema produtivo e, portanto, engrossa o déficit dos bens a serem pagos a futuro. Isso é possível porque, entre os humanos civilizados,  bens e serviços são representados por pedaços de papel de curso legal, ou por números armazenados em servidores de computador, protegidos por uma parafernália de back-ups.  E que deus nos livre de um dia isso estourar.

Comprar a crédito vicia, como vicia qualquer droga. E quem são os traficantes dessa nova droga? Alguém invisível, representado por marionetes escondidos atrás de um telefone, com quem você discute, negocia e implora para defender-se do ataque, isto é, quando você ainda não está viciado. Quem não gastou horas ao telefone, esgotou a paciência, perdeu a calma, tentando livrar-se daqueles malditos cartões de crédito que ninguém pediu e mal se sabe quem enviou? Quem não gastou tempo explicando pacientemente que não precisa daquela generosidade tipo “aproveite, seu limite de crédito foi aumentado”? Quem não desperdiçou energias pendurado num telefone explicando a uma múmia escondida não se sabe onde, tentando obter o estorno de uma  tarifa cobrada por um serviço que nunca pediu nem utilizou?
Tome cuidado. Essa droga não mata. Mas esfola.