18 junho 2011

Dever de casa: Escrever

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 “Escrever” continua atual. Depois que o Severino Mandacaru simulou um ataque de demência por achar que, devido ao que já se publicou, e se continua publicando,  não sobrariam leitores para ele, aparece no Segundo Caderno do “O Globo”,  uma coluna de Francisco Bosco com, exatamente, esse título:  Escrever.
Logo depois do destempero do Severino, a colega Mônica Noronha tratou desse tema com seriedade explicando como e por que escreve. Debatendo-se entre o prazer da escrita e as obrigações que lhe são impostas pela profissão que exerce,  Mônica dá uma importância elevada  à contraposição publicações/ leitores, resigna-se por não poder escrever tudo o que gostaria,  e encerra o assunto: “Então, que venha o possível”. Decisão sensata.
Na sua coluna  Francisco Bosco cita o filósofo  Giorgio Agamben:  Escrevemos para nos tornarmos impessoais  Bosco explica: “Segundo o filósofo, cada sujeito é formado por duas dimensões, uma pessoal, outra impessoal. A pessoal é o Eu, a consciência, a identidade; o que em nós é constituído, sabido, reconhecido. A parte impessoal é o que, “em nós supera e excede”, é o que nos revela “que nós somos mais e menos do que nós mesmos”, é uma “zona de não conhecimento” em nós mesmos”. Depois de estender-se numa  longa e detalhada interpretação das palavras do filósofo, Bosco conclui:  “Para mim, é por isso que se escreve, ou, ao menos, é por isso que escrevo: para transcender os limites tediosos neuróticos do meu ser”.
Nunca pensei que fosse tão complicado.
Severino Mandacaru, por exemplo, que só ficava neurótico quando faltava cerveja,  escrevia a seu modo – não precisava de papel – , cantando numa  praça em  Glória de Goitá:

Eu canto, eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto gloza e repente
E galope à beira mar ...

Moço distinto se chegue
Meu canto é pra si escutá
Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná ...

Severino tinha suas  razões.  A vida dura na caatinga não lhe permitia maiores elocuções.

 Creio que chegou a hora de dizer por que escrevo. E vou ser sincero:
Escrevo para me exibir. Para receber aplausos e vaias. Escrevo no centro de um palco, como um ator.  Curvo-me em agradecimentos quando me aplaudem. Cubro o rosto quando me vaiam.
Escrevo para ser lido. Fico alegre quando descubro que alguém me leu. Não são muitos:  Um colega aqui, um amigo ali, um primo, um cunhado, um sobrinho, um neto. E eu mesmo.
Escrevo porque gosto de ler. Como leitor, quero saber o que penso. Se não escrever, não posso ler-me. Leio como qualquer leitor, fora do palco. Quando gosto, rio muito e aplaudo. Quando não gosto, vaio e rasgo tudo.
Escrevo porque vivi. Não sei inventar histórias. Escrevo o que vivo.
Escrevo ... porque  gosto. E tenho papel e lápis.


07 junho 2011

Lição de Inglês


A professora era miúda, baixinha e magra. Sua voz era meiga e suave, delicada  como o seu corpo. Sussurrava poemas de William Blake – “tiger, tiger, burning bright...in the forest of the night” – como se cantasse uma canção de ninar.
A professorinha se  preocupava com a minha pronúncia e com a minha saúde. Trabalhando no turno da noite,  minha pele havia adquirido um tom metálico fosco, parecido com o da prata  coberta pela pátina do tempo.  A fábrica Bangu era o meu segundo emprego, que sucedeu à Itatiaia, fábrica de tecidos crus plantada em Santa Cruz, lá no  finzinho do estado do Rio de Janeiro. Eu entrava às dez da noite e saía às seis da manhã. No caminho de casa, durante o inverno, o dia apenas clareando, eu parava sempre no mesmo boteco e “jantava” dois ovos fritos com uma cerveja. Estava  seguindo o conselho que me havia sido dado pela professorinha:
-- “Eat many eggs!”, dizia-me sempre.  E repetia a frase acenando-me com seus bracinhos miúdos,  gritando  do portão de sua casa, quando, terminada a aula, eu me afastava. Em sinal de reconhecimento e obediência  eu me virava e levantava as mãos para o céu. Não sei bem o que aquilo significava mas pelo sorriso que via em seu rostinho magro percebia que ela ficava contente.
No meu jantar das seis da manhã eu sentava sempre numa mesa da calçada. As pessoas que passavam balançavam a cabeça e podia-se ler o que pensavam:
“Pobre coitado, tão jovem, bebendo  a uma hora destas, imagina como estará quando chegar a noite”.
Um dia ela me falou de Deus. Eu, que considerava Deus apenas  um amigo de infância, interessei-me, e perguntei onde ficava a sua igreja. Ela apertou-me as mãos com ternura e explicou:
-- We have no church. We pray in the streets.
Passei a venerar a professorinha que rezava nas ruas, sem imagens nem templos. Na flor da juventude, foi graças aos seus conselhos que sobrevivi por mais de um ano àquele regime de trabalho noturno que subjuga o homem à mais cruel solidão. Não havia passeios. Não havia namoro. Não havia festas. Não havia cinema nem teatro. Não havia sono. Não havia despertar. Não havia nada.
Só havia dois ovos fritos, uma cerveja casco escuro e a professorinha. 
Todos os dias.
-- “Eat many eggs!”