14 maio 2011

ESCREVER


-- Vou parar de escrever. 

-- Por que? 

-- Estou enlouquecendo.

-- Mas você não precisa parar de escrever só porque está ficando louco. Você não  lê jornal?  Não viu como tem louco escrevendo? Preste atenção ao que dizem certos políticos. E os economistas, desvairados, quando analisam as crises mundiais, os superávits primários, a distribuição perversa da renda,  a deterioração das relações de troca, o corporativismo nas relações intersexuais dos povos nômades do baixo Cáucaso e sua influência na taxa de formação do capital, etc., etc...
Todos doidos! Eles conseguem comprovar  teses diametralmente opostas usando o mesmo argumento. E os nossos legisladores, baseados nessas informações, para nos proteger, danam-se a tacar impostos e aumentar juros. Você, pelo menos, não prejudica ninguém. Escreva loucuras. Ninguém notará.

-- Mas essa é justamente a minha preocupação. Quem vai ler? Tirando meia dúzia de amigos ...

-- Não se preocupe com isso. Sempre haverá alguém mais descuidado disposto a ler o que você escreve.

-- Acho que você não me entendeu.  Não duvido que pessoas abnegadas se disponham a ler o que escrevo. O problema é fazer com que o livro chegue a elas. Não há pessoas suficientes para todos os livros que são publicados. Eu lhe garanto: tem mais livro do que gente!

-- Como assim, tem mais livro do que gente?

-- Você já reparou quantas livrarias existem espalhadas pelo mundo? Comece pelo Rio de Janeiro. Quantas? E Buenos Aires, aqui visinho, que tem três vezes mais do que o Rio? Você conhece as livrarias de Nova York? São gigantescas! E Paris? E Londres, Frankfurt, Madri, Milão? Tókio tem uma livraria que tem sete andares com a área de um quarteirão! Não, não, isso dá pra enlouquecer! São livros e mais livros que vão se acumulando desde  Gutemberg, nas livrarias, nos armazéns, nas bibliotecas, nos arquivos, nos mosteiros,  nos museus e até na minha casa. Não há gente  para tanto livro. Só de pensar nisso eu enlouqueço.

-- Tenha calma. Acho que ainda há uma possibilidade de interromper esse seu processo de decomposição cerebral. Em primeiro lugar você está se precipitando. Se você não tem dados estatísticos confiáveis você  não pode concluir que não há leitores suficientes.  E aí a coisa se complica porque você teria que fazer um corte no tempo, calcular o número de livros em estoque nas livrarias nessa data, incluir as bibliotecas públicas, as particulares, os arquivos e sei lá o que mais, e ainda assim teria que fazer uma abstração deixando de  fora todo o material publicado em forma de jornais, revistas e boletins, sem falar em e-books, blogs e tudo o que  circula no espaço sideral ...

-- Pois é. Essa é a minha intenção. E eu comecei dando um passo bem modesto, analisando  um microcosmo que me permitisse montar um modelo a ser aplicado no resto do mundo.

-- De que maneira?

-- Pelo Rio de Janeiro. Com uma só livraria.

-- Como?

-- Você conhece a Leonardo Da Vinci? Sabe quantos livros tem lá dentro?

-- Não, por que? Você sabe?

-- Eu contei.

-- Impossível, você está maluco. Ninguém conseguiria fazer isso. Você perguntou pra Dona Giovanna?

-- Não. Não me atrevi, ela poderia desconfiar. Mas eu calculei. São 86.400 livros, com pequena margem de erro.

-- Nem vou lhe perguntar como você conseguiu fazer isso.

-- Veja bem, vou simplificar:  a livraria tem 5 salas com estantes que vão até o teto. Cada estante é dividida em compartimentos, todos iguais, graças ao bom senso do marceneiro. Achar o total de compartimentos foi fácil. Contei o numero de livros que existe em cada compartimento e chequei, por amostragem, com alguns outros, pois nem todos os livros têm a mesma espessura. Assim cheguei a um valor médio representativo, com boa margem de segurança, de todo o conjunto. Os compartimentos que armazenam dicionários e livros de arte, que são notadamente mais grossos, foram tratados em separado e receberam um coeficiente de correção. No piso da loja também há livros, distribuídos em gôndolas, cuja quantidade pode ser facilmente calculada tomando-se o número de livros por metro quadrado. O meu passo é bastante regular e com ele posso medir qualquer distancia com erro menor do que dois por cento. Determinada a área de cada sala tem-se o total de livros, com o cuidado, naturalmente, de descontar o espaço ocupado pelas vias de acesso, escadas, mesas e cadeiras da administração, coletores de lixo, e onde ...

-- Pára, pára! Vou lhe dar o telefone de um médico.

-- Que médico?

-- È o psiquiatra que me curou quando eu parei de escrever. Não deixe de procurá-lo assim que você acabar essa cerveja.
                                                                                    

Um comentário:

  1. Este é um incentivo para que continue a escrever. Seus "casos" são muito interessantes, alguns muito divertidos e prendem a atenção do leitor. Parabéns pelas idéias e pela memória para a reprodução nos textos.
    Betinha

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