28 março 2011

A Pena da Morte




A Pena da Morte

Eu tive um sonho
E no meu sonho eu morria
E morrendo eu não me via
Sofrer  como devia.

Porque sofrendo passei a vida inteira
E mesmo sabendo que a vida é passageira
Não me dei conta de que um dia eu morreria

De repente uma pena apareceu no espaço
Riscando os ares  rápida e matreira
E apontando  meu peito zombeteira
Disparou letras com desembaraço

A pena desenhava no ar letras  mal feitas
Que eu arrumava sem zelo em linhas tortas
Para que fossem consideradas letras mortas

E assim passou-se o tempo
Minha alma levitava em desatino
Pois negava-se a cumprir o seu destino:
Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura
Onde pudesse iniciar vida mais pura

Eu me deixava flutuar no ar disperso
Para não perder  as letras e desperdiçar o verso

Foi quando a pena, com sua ponta de platina
Tresloucada  insana  escreveu ferina:

“Aqui  jaz aquele que achava
Que em sonho morreria
Mas no seu sonho delirava
Porque morto já estava e não sabia”


N.B. A fotografia que ilustra esta página  foi tirada da capa do livro
  “Una Noche de Amor” de Javier Marías – Edição H Kliczkowski
                                                                                                             


16 março 2011

Rio Capibaribe - Pôr de Sol


Eu estava falando de Literatura Naif  e de repente me regalam com um livro de memórias do Capiba. Ele mesmo, o grande compositor pernambucano que, fugindo da mesmice, chama o seu livro, não de memórias, mas de "Livro de Ocorrências", talvez influenciado pelos quase trinta anos que serviu como funcionário do Banco do Brasil.
E ocorrências não faltaram ao Capiba pois ele reuniu nada menos do que 500 páginas num verdadeiro compêndio sobre a música popular
brasileira. Ali ha um mundo de história, que começa em 1904 e vai até a data da sua publicação, em 1985. Capiba abre o seu livro com uma frase que vale um poema: "O aboio de nossos vaqueiros é o cantochão do povo nordestino", e termina com uma frase lapidar: 
"Nada mais eu disse, nem me foi perguntado!".
Ocorreu-me comentar aqui o livro do Capiba porque me parece um modelo de literatura naif por sua singeleza, sua ingenuidade, na   pureza infantil com que expõe  seus conceitos. Ler Capiba é ouvi-lo falar, com sua voz calma e pausada, com seus tropeços nos "ces" e "ques".
Vejam este trecho:
"Conforme disse, quando eu era menino minhas paixões eram a música e o futebol. A música eu continuei praticando porque não exigia esforço físico, ou melhor, não precisava de estar correndo de um lado para outro atrás das notas. Era só me sentar diante de uma mesa, e de acordo com a vontade, ou com o que eu já havia idealizado, pegar da pena ou lapis e partir para uma construção melódica. Digo isso porque não acredito nessa história de inspiração. O sujeito faz aquilo que sabe e estamos conversado."
Assim era o Capiba.

11 março 2011

Literatura Naif


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Quando me deu na telha escrever memórias, pensei que poderia usar a expressão  literatura naifpara justificar os meus erros de português. Erros elementares, banais, que continuam comigo até hoje. Nem sequer lhes sei os nomes. Mas, ou eu escrevia, ou estudava gramática. Então pensei: se um pintor naif, que nunca aprendeu perspectiva geométrica, projeção, épura, poliedros e coisas assim, é  contemplado em museus e galerias, por que  alguém que rabisca escorregando  na sintaxe, nas vírgulas e na ortografia não pode ser lido? O que ele precisaria,  obviamente, era ter algo de interessante e bonito para contar. Isto a vida me tinha dado (desculpem o metinha), não precisava inventar nada, bastava contar a verdade.

Naquela época descobri um blog que se chamava “Blog do Escritor” , um blog sério, de gente competente, pois entrevistava grandes escritores. Como ele oferecia um espaço para comentários perguntei se a expressão “literatura naif” era usada e em que circunstancias. A resposta foi curta, grossa, clara, precisa e contundente: “Toda a literatura é naif”. Nem mais uma palavra.

Fui, então, aos sites de busca cuidando para não cair nas trampas de costume. Encontrei coisas  interessantes como, por exemplo, “Cervantes e a Literatura Naif”, título de  um ensaio sobre  Don Quixote, publicado na Espanha. Como também um blog em Portugal  de uma  professora  de línguas que se corresponde com escritores de outros países  - vamos chamá-los  “primitivistas”. Parei de pesquisar porque, como aconteceu com a gramática, ou pesquisava, ou escrevia.

Voltei às minhas lembranças e comecei a avaliar o que havia aprendido em matéria de arte naif. No meu tempo de Severino conheci dois pintores primitivistas que tiveram alguma projeção: Gina, em Olinda e Chico da Silva  em Fortaleza. Ambos estavam no auge da fama dentro do seu mundo. Gina expunha nas melhores galerias do Recife (vá lá, não eram muitas) e Chico acabava de voltar de uma exposição em Paris encerrada com muitos aplausos e todos os quadros vendidos. Nessa ocasião Chico da Silva foi consagrado por Andrè Malreaux, que o colocou entre os dez melhores primitivistas do mundo. Ambos caíram em desgraça junto aos “marchand”, vale dizer, junto ao mercado de arte: Gina por não cumprir os  compromissos nas exposições que programava - eu mesmo participei de um desses fiascos quando, com grande dificuldade,  em plena ditadura e com a ajuda de alguns amigos - arranjei-lhe um salão para que expusesse em São Paulo e ela não compareceu; o Chico,  por ter permitido que uma  sobrinha imitasse a sua pintura inundando as calçadas de Fortaleza de quadros a dois tostões. Com Chico no auge da fama os turistas deslumbrados se abarrotavam de galos e dragões habilmente impingidos pelos camelôs cearenses, indubitavelmente os melhores do mundo (os camelôs, não os galos).

Chico bebia muito. Misturava cerveja com uisque  Old Eight,  mistura que, descobri mais tarde, era, pelo menos para ele, alucinógena. 
Passei algumas noitadas bebendo com ele num botequim vizinho ao casebre, pouco mais que um mocambo, onde ele morava. Falava sem parar. Ouvi-lo era um deslumbramento. Ele descrevia os animais fantasmagóricos que a sua imaginação criava com o mesmo furor com que os  pintava. Ouvi-lo falar sobre a ditadura era como ler o Samba do Crioulo Doido, do Stanislaw Ponte Preta, só que dez vezes melhor.
Foi naquela época que escrevi  “A Centenária” , que era apenas  um conto e não uma memória. Mas que se tornou memória porque, inspirado numa noite que passei na cadeia, ficou soterrado durante quarenta e dois anos. Desenterrei-o por achar  que seria ele que me consagraria como escritor naif.
Bem,  amanhã começo a estudar gramática. Essa história de escritor naif  não vai colar.        

02 março 2011

São Trinta Copos de Chope

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São trinta copos de chope

Na sua crônica de hoje*  Zuenir Ventura cita o poeta pernambucano Carlos Pena Filho  morto aos 31 anos em um acidente de automóvel.

Zuenir explora o tema “amar o transitório”, onde  analisa nosso comportamento diante de atitudes que nos levam a desperdiçar  oportunidades com as quais nos deparamos:  “... perdemos tempo com bobagens que nos aborrecem além da conta, deixando passar momentos preciosos ...”  Zuenir  termina sua crônica com uma estrofe de Carlos Pena:

“Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório”

Lembro-me do Carlos Pena Filho sentado no Bar Savoy da Avenida Guararapes, onde costumava encontrar os amigos, definindo a lua que surgia sobre os arrecifes:

“Era uma lua tão grande
De tão vermelha amplidão
Que mesmo Ascenso Ferreira
Comendo só a metade
Morria de indigestão”

E como não lembrar da sua mais célebre evocação ...

“São trinta copos de chope
São trinta homens sentados
Trezentos desejos presos
Trinta mil sonhos frustrados”  ...

... à qual nós dávamos seguimento, em coro, comandados por Rubens Teixeira:

“Como bebes companheiro! Como bebes tão ligeiro ...”

Bons tempos aqueles, companheiro, bons tempos...

*Jornal O Globo de 23 de Fevereiro de 2011, página 7