30 dezembro 2009

DELITOS DA INFÂNCIA - O PATINETE

 Antes da invenção dos ridículos joguinhos de computador, agora em processo de metástase para telefones celulares, a gente brincava de patinete. Brincava, não. Praticava o esporte do. E o sonho de qualquer criança era ter seu próprio patinete. Na Vila Maria todos tinham o seu. Aos dez anos de idade, eu ainda não tinha o meu. Meu irmão, oito anos mais velho que eu, era mecânico e tinha em casa uma verdadeira oficina. Entre ferramentas, instrumentos de medição, peças usadas e sucata de toda espécie, existia a parte essencial do patinete: a rolimã. Muitas rolimãs! Se eu tirasse duas, só duas, daquela promiscuidade de formas e tamanhos, ele não perceberia. Separei as duas que precisava, de tamanho compatível com a minha infância. Eram de diâmetros diferentes, mas isto não seria problema. Naquela manhã, antes da hora do almoço, eu já estava com meu patinete montado. Deslizei por Seca e Meca até que, no fim do dia, encostei-o, triunfante, junto à porta da cozinha. Eu estava orgulhoso. Eu o havia feito. No fim do dia meu irmão volta do trabalho. -- Oi, você ganhou um patinete? -- É... ganhei. Ele deitou o veículo, observou-o atentamente e recolocou-o na posição que estava, sem dizer palavra. Preparei-me para o pior. Percebi que ele tinha reconhecido as rolimãs. --O sujeito que fez esse patinete é muito burro. Ele colocou a roda maior na frente. Devia ter feito o contrário. Com a roda menor na frente o impulso é maior e o patinete rompe a inércia com mais energia, facilitando a partida. Explica isso pro teu amigo. No dia seguinte desmanchei o patinete e coloquei de volta as rolimãs . Penitenciei-me do meu delito, não tanto pelo remorso do furto cometido mas pela humilhação de ter sido incompetente.

16 dezembro 2009

O MEU RIO DE JANEIRO

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O velho DC3 desabou sobre a pista e caminhou, trôpego, até alcançar a estação de passageiros do antigo Galeão. Visto com os olhos de hoje aquele avião não passava de um calhambeque mas aos olhos de um garoto de 18 anos era um bólido espaçoso e confortável. A Real Transportes Aéreos mandara uma limusine apanhar-me em casa, na cidade de Paulista, pouco distante do Recife, para conduzir-me até ao aeroporto. Em 1948 viajar de avião era um luxo. A minha emoção, ao desembarcar no Rio de Janeiro, era tão grande que mal pude registrar a paisagem que se descortinou durante o percurso entre o aeroporto e o meu destino final: um sóbrio casarão na Rua Bela, em São Cristóvão, o alojamento da escola que iria me abrigar por quatro anos durante os quais eu me amalgamaria com a cidade do Rio de Janeiro. Percebi que o Rio de Janeiro começava a penetrar na minha alma e tive disso a confirmação quando, na manhã do dia seguinte, depois de uma noite repleta de sonhos, ainda na cama, chegou-me até as narinas o aroma penetrante do café que estava sendo coado na cozinha. O Rio que me recebia era aristocrático. Seu Alfredo, embalsamado dentro de uma espécie de fraque “risca de giz” e gravata borboleta, servia o almoço com a austeridade de um garçom londrino. A vida, no internato, era espartana: oito horas de aula durante o dia e sessão de estudo, à noite, obrigatória. Não sobrava tempo para devaneios. Mas, aos poucos, fui descobrindo a cidade, completamente envolvido pelo seu fascínio. Eu observava o trejeito das pessoas, como falavam, como riam, como se comportavam dentro dos bondes, como se sentavam nos bancos dos jardins. Eu percorria as livrarias deslumbrado e namorava com a estátua da Primavera na Praça da República. Ao domingos eu lia “O Jornal”, considerado o melhor jornal do Brasil, embora o “Jornal do Brasil” se considerasse o melhor jornal, segundo um trocadilho bobo que corria na época. Aos domingos havia também, pela manhã, os recitais de órgão no Mosteiro de São Bento onde eu chegava de bonde, depois de duas baldeações. Aos sábados o bonde 34 “Alegria” me levava até a Praça Tiradentes onde, numa rua transversal, o Cine Dom Pedro exibia os filmes do neo-realismo italiano, que tanto me marcaram. Na Cavê tomei meu primeiro chá. Na Spaghettilandia comi meus primeiros espaguetes e na City Rio minha primeira pizza. Nos Esquilos tomei meu primeiro conhaque. No Bola Preta, pulei meu primeiro carnaval. E o que dizer do Samba Danças, bem ao lado do Palácio Monroe, onde as “táxi-girls” perfuravam meus cartões com uma volúpia que não demonstravam durante a dança? Foi ali que assisti o Jamelão, cantar e o Grande Otelo dar grandes gargalhadas. E o Mangue ? O Mangue, a cidade proibida, a cidade do pecado... O Mangue fervilhava de gente vinte e quatro horas por dia. No Mangue não havia descanso. O Mangue não podia parar. O Mangue era a turbina que proporcionava a energia para o Rio funcionar. O Mangue aliviava tensões, apaziguava discórdias, equilibrava emoções, saciava desejos, alimentava sonhos. O Mangue fazia do carioca um ser equilibrado. O enorme gasômetro ao lado, com sua cúpula que subia e descia sobrepondo-se ao casario baixo da área, criava um cenário de atividade industrial. A sua população deslocava-se com rapidez como operários saindo das fábricas. Um delicado cheiro de gás ocupava todos os espaços, fixava-se nas narinas e no cérebro, e se tornaria, com o tempo, um eficiente afrodisíaco. A laranjada no Tabuleiro da Baiana... o chop no bar da Brahma, bem ao lado... os ônibus “Camões”, caolhos de nascença... Cacilda Becker... Alda Garrido... o Hamlet do Sergio Cardoso... Era o Rio de Janeiro... O meu Rio de janeiro... O Rio de Janeiro modernizou-se. Eu, amadureci. Caminhamos, ambos, à procura um do outro.

14 dezembro 2009

DELITOS DA INFÂNCIA - A VELHA

- Oh, Maria! Lavar a cona! Seu Jorge dirigia-se à própria mãe, estendida num leito, inválida. Eu tinha oito anos. Seu Jorge era meu vizinho. Era português como a maioria dos meus vizinhos na Vila Maria. Além da mãe, moravam com seu Jorge uns 40 cachorros que ficavam presos na sala. Eu nunca soube o que eles faziam lá. Para mim eram apenas moradores. O seu Jorge havia me pedido para ir uma vez por dia à sua casa e ver se a velha sua mãe precisava de alguma coisa. Ele passava o dia no trabalho. Saía de manhã cedo, como todo o mundo na Vila Maria, e só voltava à noite. As necessidades da velha eram poucas. Lavar a cona, alertada ou não pelo filho, era uma tarefa muito pessoal. A mim, vez por outra, pedia para ir comprar alguns biscoitos, ou pão, ou mortadela. Queijo, pouco. Era o seu almoço. Esse era o meu trabalho. Eu não sei quem limpava a bosta dos cachorros. Só me lembro que a casa era um fedor só. Um dia a velha, sentando-se na cama com muito esforço, tirou de um móvel junto à cabeceira, que na época se chamava “criado mudo”, uma garrafinha. Acariciando-a, colocou-a nas minhas mãos e apertando fortemente tudo, garrafa e mãos, disse-me, suplicante: -Oh, Luis, meu p’quenino. Tu que és tão bom, não me conseguirias um pouco de pinga? Sei que é difícil mas tua alma pura há de conseguir esta graça. Bastam duzentos réis mas eu não os tenho. Anda a ver se consegues um fiado lá no armazém. Me farás isto? Diz-me q’sim!. Aos oito anos eu pertencia à Cruzada Infantil, ligada a São Tarcísio não sei bem com que amarras, na Igreja da Vila Maria. Semanas antes o padre havia reunido a Cruzada Infantil, distribuído um cartão cheio de quadradinhos e despachado os cruzados para angariar fundos destinados a não-sei-o-que. Abordaríamos as pessoas na rua e pediríamos a esmola. Com uma agulha, parte inseparável do cartão, perfuraríamos tantos quadrados quantos tostões tivéssemos recebido. Eu havia arrecadado meio cartão e estava com as moedas no bolso. Não hesitei um só minuto. Corri para o armazém e mandei encher a garrafinha. Entreguei-a, orgulhoso para a velha. Seu olhar de gratidão me dá calafrios até hoje. Cometi um crime? Sim. Roubei um padre para dar a extrema unção a uma velha.

12 dezembro 2009

AS VOZES DO ALÉM

Nas freqüentes viagens que fazia do Rio de Janeiro para Tókio, eu precisava pernoitar em Los Angeles ou em San Francisco, na Califórnia. Sempre que podia, eu optava por San Francisco. “Frisco”, como a chamavam os americanos, com seu lindo sol e suas chuvas inesperadas tinha, para mim, um encanto particular. Vez por outra eu arranjava um modo de permanecer mais de uma noite para cumprir os dois programas que mais me fascinavam: Contemplar a ilha de Alcatraz a partir da amurada do continente, onde eu ficava estudando fugas heróicas e mirabolantes, e dar umas voltas no clássico bondinho, o cartão postal da cidade.

 O passeio de bonde subindo e descendo aquela colina no centro da cidade tinha, para mim, um encanto especial. Levava-me de volta aos meu doze anos no bonde da Vila Maria, com todas as suas recordações, o vento frio no estribo, o trabalho árduo, as longas caminhadas pelas estradas de terra, a vida dura na penúria da família. San Francisco era uma cidade mágica. Numa dessas viagens não foi possível pernoitar lá
. A Japan Airlines informou, de última hora, que faríamos a conexão em Los Angeles. Embarquei meio acabrunhado. Mas ao chegar ao hotel, em Tókio, o Imperiaro Hotero me reservara uma surpresa.

 Eu já estava acostumado às monumentais exposições que o hotel preparava em seus amplos salões, mas com essa eu não contava.
 No espaçoso saguão que precede o restaurante onde é servido o café da manhã – é bom saber que o Imperial Hotel tem 4200 apartamentos – haviam instalado nada mais nada menos que um exemplar do bondinho de San Francisco, autêntico, montado sobre trilhos de verdade. Naquela manhã eu havia acordado com excelente disposição para o trabalho, estava desligado de qualquer preocupação.

 Eram seis horas da manhã, não havia uma alma. Ainda no salão, próximo ao bonde, sentei-me num banco de madeira igual àqueles que se encontram nos pontos de parada em San Francisco. Fiquei contemplando, deslumbrado, o meu bonde.
 Depois de algum tempo subi e ocupei meu lugar na mesma posição de sempre. Fechei os olhos e comecei a imaginar o bonde despencando ladeira abaixo até parar, suavemente, na parte plana da cidade.

Foi quando comecei a ouvir as vozes. A principio em tom baixo, como em surdina, elevando-se aos poucos, inconfundíveis no seu sotaque californiano. O que estaria acontecendo? A voz do condutor que alertava os passageiros, “watch your steps, watch your steps”, vozes de crianças nos bancos traseiros, um senhor que diz a alguém – provavelmente conduzindo um guarda chuva – “expecting rain, my dear?”, o blém... blém da sineta anunciando a saída , novamente a voz do condutor “be seated all of you, we are leaving!”.
No meu enlevo eu sentia a felicidade invadir-me. Eu me perguntava como é que aquilo poderia estar acontecendo comigo. Eu estava vivendo, certamente, um fenômeno psicofônico, como o chamam os espíritas.
As ondas do cosmos são, efetivamente, um grande mistério mas naquele momento eu entendi que havia alguma coisa além desta vida. Vozes humanas que um dia, quem sabe há quanto tempo, ecoaram através daqueles bancos e agora se materializavam para dar testemunho de que a vida, o sopro vital, não se extingue.

Estupefato, desci do bonde e sentei-me novamente no banco de espera. As vozes cessaram. Continuei no meu enlevo dando graças a Deus por ter-me contemplado com aquela experiência. Voltei a subir no bonde.
 As vozes voltaram, de pessoas diferentes, o mesmo blém... blém da sineta. Era espantoso. A partir daquele momento eu não seria mais o mesmo.
 Eu teria que mudar muitas coisas no meu comportamento e preparar-me para o que, certamente, viria pela frente.
 Eu teria que me transformar numa pessoa melhor, mais tolerante, mais disponível. Eu teria que livrar-me das mesquinharias, da arrogância, dos pequenos preconceitos.

Resoluto, preparei-me para descer. Antes, porém, em pleno êxtase, levantei os olhos para o céu agradecendo a Deus por aquela experiência que me tocara tão profundamente transformando-me num ser diferente, privilegiado e, conseqüentemente, mais responsável.

 No teto do bonde entre lâmpadas, balões e buquês de flores, escamoteadas entre as flores, duas caixinhas acústicas da Sony me traziam de volta à terra. A partir daí não foi difícil descobrir a célula fotoelétrica colocada no estribo do bonde, que registrava a subida e descida dos passageiros.
 Esses japoneses...!