18 dezembro 2006

OS ENVIADOS DE DEUS

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 Um leitor desconhecido escreveu um comentário sobre a minha recente “compostagem”(1) intitulada “O FALSÁRIO”. Segundo ele, o homem das sobrancelhas grandes era um “enviado de Deus”. Nesse comentário, ele faz uma análise psicológica (deve ser do ramo) do bom velhinho e de como ele interpretou o comportamento da criança e do tipo de castigo aplicado: fazer com que ela mesma sentisse vergonha do seu comportamento e, assim, emendar-se. O repúdio, o afastamento, a humilhação, a execração poderiam, nesse caso, resultar na formação de uma criança revoltada e inutilizada para o resto da vida. Reconheço que estou me intrometendo em terreno que não conheço. Nunca estudei psicologia. Posso estar dizendo bobagens.O fato é que o comentário me impressionou. Não vou reproduzi-lo aqui, mas, recomendo que o leiam. Refletindo sobre o assunto lembrei-me de outras situações difíceis em que fui ajudado por pessoas generosas que, mesmo sem me conhecerem, me tiraram das dificuldades. Uma dessas pessoas foi, sem dúvida, o Professor Rocha. Rocha era professor de inglês. Em 1948 o Governo Federal, em convênio com o Senai, criava no Rio de Janeiro a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil destinada a formar técnicos para a indústria têxtil de todos os Estados do país. A cada Estado foi atribuído um número de vagas proporcional ao tamanho de sua indústria têxtil. Pernambuco recebeu cinco vagas. Seria feita uma prova de seleção em cada Estado e os aprovados seriam enviados ao Rio. A escola oferecia alojamento e pagava todas as despesas de viagem. Uma vez no Rio os alunos seriam submetidos a novo exame para que se efetivasse a admissão. Os reprovados receberiam a passagem de volta. Eu estava concluindo o curso industrial básico (que equivalia ao ginasial) de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, também da rede federal e também como aluno interno. A escola ficava no Derbi (o prédio ainda está lá) bem na margem do Capibaribe, flanqueada por duas enormes figueiras (não estão mais lá) nos fundos da Maternidade do Derbi e ao lado do Necrotério Municipal. Assim, eu me acostumei a ouvir, durante a noite, os gritos desesperados das parturientes (naquele tempo não se faziam cesarianas a não ser nos casos de emergência) e, durante o dia, a acompanhar os cadáveres de indigentes, criminosos, suicidas e todos quantos não morriam de morte natural quando, depois da autópsia, eram enfiados nas gavetas do frigorífico do Necrotério. Nas noites de sábado ia ao cinema do Quartel (creio que era da Polícia Militar pois a farda era cáqui) situado na extremidade da Praça do Derbi. Era de graça. O médico da Escola era o Dr. Hilo Lins e Silva a quem coube salvar minha vida em um acidente que sofri durante uma prática nas oficinas. Encerrado o curso de mecânica, em Novembro de 1947, o diretor - Manoel Vianna de Vasconcellos – (espero não ter errado na grafia do nome) mandou-me chamar e informou-me sobre o curso que estava sendo criado no Rio. Se eu quisesse continuar estudando sem custo, não haveria oportunidade melhor. Resolvi enfrentar a prova de seleção. Eu tinha medo. No ginásio os alunos estudavam latim, inglês, até poesia se ensinava lá. No curso industrial não tínhamos nada disso. Eu não tinha como competir com os ginasianos. Preenchi o formulário de inscrição com mão trêmula. A prova foi realizada no Colégio Marista que ficava na Boa Vista. Uma multidão se acotovelava no pátio imenso. O meu terror aumentou quando comecei a ouvir a conversa dos candidatos, todos mais velhos do que eu. A maior parte já havia concluído o curso científico e muitos deles faziam curso superior. Cinco vagas! Enfrentei a prova aterrorizado. Quando a notícia chegou eu estava ralando milho verde para uma canjica, com as mãos bastante esfoladas. Eu estava entre os cinco. Muitas lágrimas se incorporaram ao milho ralado e, talvez por isso, a canjica nesse dia tenha ficado tão saborosa. Devorada a canjica, mergulhei no estudo, preparando-me para o exame de admissão. Em Fevereiro de 1948 embarquei, deslumbrado, num DC3, no que seria minha primeira viagem de avião. Do Recife ao Rio durou 8 horas. Lembro-me das escalas, mas não de todas: Maceió, Aracaju, Salvador, mais uma ou duas, Canavieiras, Cabrália, Vitória, Ilhéus, mais uma ou duas e, finalmente, Rio de Janeiro. Ficamos alojados num casarão em São Cristóvão, na Rua Bela. (será que ainda tem esse nome?). O bonde, curiosamente, tinha o mesmo número do da Vila Maria: 34 que fazia ponto final na Praça Tiradentes. O nome da linha? Alegria. Seu Alfredo, embalsamado em um par de calças risco de giz, uma jaqueta preta de lapelas lustrosas e gravata borboleta, também preta, servia as refeições. Podia-se comer à vontade. Tudo muito chique. Pela manhã eu acordava com o cheiro do café e do pão fresquinho. A Escola ficava no bairro do Riachuelo, na linha da Central, quando o morro do Jacarezinho não passava de um bucólico e pacífico aglomerado de casebres com telhados de zinco. Eu estudava como um fanático já que iria competir com alunos que vinham de todos os Estados do Brasil. Não podia falhar. Mas, desta vez, a conversa com os colegas me tranqüilizava, pois eu podia avaliar o nível em que se encontravam e me sentia seguro. Entrei na prova calmo e confiante. Dos cinquenta candidatos, seis foram reprovados e voltaram para os seus respectivos Estados. Os 44 alunos que formaram a primeira turma de técnicos têxteis na Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil foram matriculados por ordem de classificação no exame de admissão. O meu número de matrícula foi 1. As aulas se iniciaram com o edifício da escola ainda em construção. Não havia portas nem janelas. Muitas vezes a aula tinha que ser interrompida por causa do barulho das betoneiras e serras circulares. Meu fervor pelo estudo era renovado a cada dia pelo cheiro das máquinas novas que eu aprendia a montar nas oficinas da fiação. A expectativa da chegada dos teares me deixava eufórico. Foi aí que um fato perturbador veio tirar-me a paz. No curso havia a cadeira de inglês a qual não havia sido preenchida, até a metade do primeiro semestre, por falta de professor. No curso industrial, de onde eu vinha, não havia aula de inglês. A única palavra que eu conhecia era “camoni-boi” que havia aprendido na Vila Maria quando brincava de faroeste e, mesmo assim, não sabia o que significava. Todos os demais alunos vinham dos cursos ginasial e científico. Alguma coisa sabiam. Pela metade do semestre chegou o Professor Rocha. Mostrou-se logo uma pessoa simpática, sempre alegre e grande contador de histórias. Era irmão do Carlito Rocha, treinador do Botafogo, que gozava de imenso prestígio no futebol brasileiro. No primeiro dia de aula, Rocha explicou: “Como perdemos mais de dois meses de aula eu vou fazer uma avaliação do nível em que vocês se encontram e começarei as aulas por aí.” E assim foi, para meu desespero. Eu não entendia nada. Chegado o fim do semestre foi aplicada a “prova parcial”. Naquele tempo existia uma prova parcial, no fim do primeiro semestre, e uma prova final, no fim do segundo semestre. A nota para a promoção de ano era uma média das duas. Entreguei minha prova praticamente em branco e fui chorar escondido. Na aula seguinte, Rocha chegou com as provas, distribuiu a cada um a sua, e começou a ler as respostas corretas para que cada um comparasse com o que havia feito. No topo da prova, dentro de um círculo, a nota de avaliação. Quando recebi a minha prova fiquei perplexo, sem poder acreditar. Um 7 claro, inequívoco, firme, sem vacilação. Permaneci mudo, os cotovelos sobre a banca, a cabeça entre as mãos, contemplando o professor. Ele me olhava, de vez em quando, sem bater pestana. Esperei que todos saíssem para devolver minha prova, com a mão trêmula de emoção e a voz embargada: -- Professor, muito obrigado. Entregou-me um maço de folhas soltas. Eram exercícios. E, segurando meu ombros com ambas as mãos para manter-me na linha de eixo de suas palavras, disse-me, com olhar firme: -- Não tenha medo. Estuda que você passa. (1)

(1) Compostagem : Método usado pelos camponeses para produzir adubo orgânico, principalmente nas pequenas propriedades. Consiste em aproveitar os resíduos vegetais oriundos de capinas, podas, desbastes, etc. formando pilhas as quais, através da ação de microorganismos existentes na terra, fermentam, decompondo o material de tal forma que o transformam em um pó escuro, fácil de manusear e de cheiro agradável. Durante a fermentação, que ocorre espontaneamente, a temperatura interna da pilha pode alcançar até 80º centígrados. Uma pilha de composto leva mais de um ano para ficar pronta. Minhas compostagens, também.

07 dezembro 2006

VELHO SANTIAGO, em Teresina PI



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O Rio Parnaíba deslizava nervoso e ágil como um lagarto embriagado de sol. Aqui e ali afloravam grandes calotas de areia beijadas pela água, em pequenas ondas, transformando as margens do rio numa bucólica e bem freqüentada praia.


A praia de Teresina PI. Do outro lado do rio, escondido em um botequim vazio, Santiago bebia. -- Bom dia, Santiago. Começou cedo, hoje.

-- Bom dia, chefe. Como chegou até aqui?

-- De canoa. A nado eu não conseguiria.

-- E como soube que eu estava aqui? Quem lhe falou?

-- Ninguém. Vim pelo cheiro. Você precisa parar de beber, Santiago. Você está - -- se matando. Vamos sentir a sua falta.

-- Coños.


Como poderia um espanhol, magro e longilíneo, que parecia ter sido projetado por ninguém menos que um Gaudí, tornar-se contramestre de fiação e vir parar em Teresina PI, na única fábrica de tecidos existente em todo o Estado? Nunca pude entender como e porque Santiago havia chegado até ali. Mas, depois de alguns meses de trabalho na fábrica, pude entender porque se entregara à bebida.


Em mil novecentos e cinqüenta e seis Teresina Pi era um lugar quente. Deve ser até hoje, mas, hoje o ar condicionado é comum, enquanto que naquela época, praticamente não existia, pelo menos no único hotel da cidade, onde eu residia. Eu entrava na Fabrica às 5 horas da manhã e saía às 10 da noite. No caminho de volta para o hotel eu parava na Sorveteria e jantava. Era uma refeição frugal mas abundante: Aproximadamente um litro de sorvete. Pequi, bacuri, cupuaçu, cajá..., sabores que me encantavam e aguçavam o meu deslumbramento tropical.

Chego ao hotel jantado e embalado para dormir.

-- O senhor quer que molhe a rede? pergunta-me a arrumadeira.

No primeiro dia, estranhei a pergunta mas não pedi explicações, encabulado por revelar-me um ignorante dos costumes locais. Respondi apenas com um "não, obrigado" achando que “molhar a rede” fosse alguma metáfora que se revelaria, por si, mais tarde. Fiquei por algum tempo deitado na enorme rede que substituía a cama, planejando o que iria fazer, no dia seguinte, na fábrica. Logo o calor tornou-se insuportável. O simples contato da pele nua com o tecido da rede elevou a temperatura a tal ponto que me obrigou a levantar. Saí até a pequena varanda do quarto. Uma lua enorme prateava a crista das nuvens formando desenhos bizarros.

Ao movimentar-me senti que o ar me refrescava a pele e entendi logo a pergunta da arrumadeira. Ao deitar-me, pareceu-me ver a cara vermelha do gordo Emil Kwaisser, meu professor de física de anos atrás, deslizando com a agilidade de um hipopótamo, de um lado para outro da sala, curvando a cabeça a cada passo para dar mais peso às palavras enriquecidas pelo seu sotaque austríaco:


-- Ao efaporar, o água depositada no superfície de um opjeto apsorfe calor e, conseqventemente, reduz a calor latente desse opjeto. Hafendo ar em mofimento na ambiente, o efaporaçom se torna mais rápida, o que accelera, por sua fez, o -- redução do temperatura no superfície desse opjeto.


Era preciso molhar a rede e, não só isso, balançá-la. E foi aí que entendi porque havia uma cordinha pendurada em um anel estrategicamente colocado na parede.


Santiago era o mestre da seção de cardas, mas eu o havia colocado também como supervisor dos filatórios. Assim, com as duas pontas do processo de fiação sob controle, eu poderia saber caso as coisas andassem mal. De semblante carregado, Santiago estava sempre concentrado no trabalho. Já beirava os setenta anos e, apesar da idade, demonstrava uma energia espantosa. Sua dedicação ao trabalho era tal, que passei a venerá-lo. Por outro lado, era uma das poucas pessoas com quem eu podia conversar naquele oásis de idéias.


-- Santiago, o que você ainda está fazendo aqui? Já passa das oito, homem, vá -- para casa!

-- Ora, Seu Luís, tenho ainda que calibrar esta carda para que possa trabalhar amanhã bem cedo. Os filatórios estão quase desabastecidos. Não podemos correr o risco.

Fazia-me pena. Eu olhava o seu corpo consumido e envergonhava-me da miséria que ele recebia no fim do mês, como salário. Eu já havia criado um sistema de incentivos aplicados à produção, cuja aprovação vinha sendo protelada indefinidamente. Estávamos ali para salvar a fábrica. Mas, a troco de que?


Eu era jovem e acreditava que, com trabalho duro, poderia modificar as coisas e criar uma empresa onde houvesse uma remuneração decente para todos e o empresário cresceria e montaria novas fábricas, e empregaria mais gente e ... Santiago não perguntava. Santiago trabalhava. E bebia.


-- Santiago, pára com essa bebida! Desse jeito você não vai durar muito.

-- Durar pra que? Eu já durei muito. Minha parte, neste mundo, eu já fiz. E sempre me pagaram uma ninharia. O que estou fazendo agora é de graça. Eu tenho pena é desses coitados do outro lado do rio, que morrem de sede na seca do verão e afogados nas chuvas do inverno. É para eles que eu mantenho as cardas ajustadas. Eu sou rico. Posso afogar-me na cachaça.


O restaurante do hotel era atendido por José, um garçom de estilo indeciso pois era uma combinação de barroco e gótico, com dois vitrais bizantinos no lugar dos olhos. Através deles podia-se ver o por do sol no Rio Parnaíba, que começava com um vermelho estrondoso, passava para um alaranjado calmo e terminava com tons de azul e violeta, traduzindo toda a melancolia que invadia a alma no fim do dia. Emoções inacabadas. Projetos não realizados, amores pendentes. Com uma fleuma que ressaltava ainda mais seu porte ereto gótico e seu ar bonachão barroco, José poderia ter sido “maitre” do restaurante Mowenpick de Times Square.


-- O que temos para almoçar hoje, José?

-- Peixe, Senhor Luís.

-- Do Parnaíba ou do Poty?

-- Como vou saber, Senhor Luís? Eu ainda nem almocei. O Senhor me dirá, depois de comê-lo.


Malandro. Devolvera-me a impertinência da pergunta sem perder o respeito.

A fábrica melhorava lentamente. Era preciso treinar os operários que, acostumados com a informalidade do trabalho na roça, não entendiam a disciplina necessária no trabalho industrial. A fábrica se situava na beira do rio, há poucos metros da margem.

-- Onde estão os fiandeiros desta seção? Por que as máquinas estão paradas?

-- Foram tomar banho no rio. Estavam com muito calor.

-- E o contramestre não viu isso?

-- Ele avisou o pessoal que esta seria a última vez.


Enquanto o desespero me abalava o entusiasmo, o empenho com que agiam os mestres e contramestres me dava alento para continuar lutando. Firme no seu propósito de trabalhar de graça, Santiago continuava:


-- Amanhã vou aumentar a velocidade dos filatórios da Sala 2, Seu Luís. Melhoramos muito a qualidade dos pavios e os fiandeiros do primeiro e do segundo turno já estão bem treinados. Falta os do terceiro, mas lá eu diminuo o número de fusos. Eles vão dar conta.

E quanto mais Santiago trabalhava, mais Santiago bebia. Eu me preocupava, por mais que sua capacidade de recuperação me confortasse. Além do mais, morava sozinho. Quanto tempo duraria isso?


As manhãs de domingo eram consumidas nas praias do Rio Poty as quais, pela sua formação, eram chamadas de “coroas”. Ali eu passava o tempo prelibando a pele tostada das garotas, em seus maiôs lamentavelmente pouco decotados e suas canelas tristemente finas. Frequentemente encontrava o tenente Alberto, chefe de um destacamento do exército que se ocupava de abrir estradas na região e grande aproveitador das não muito ingênuas freqüentadoras das “croas”, como pronunciavam os piauienses, e com quem era possível rir um pouco. Um dia, propôs-me fundar um clube de natação, nas croas, com o indisfarçável intento de aglutinar os maiôs numa área onde pudesse comandar, já que este era seu ofício, com mais eficiência. -- Já tenho até o nome , anunciou ele com certa solenidade: -- Croa Craul Crube, disse-me, entre sorrisos, ajustando-se à fonética local.


Sábado encontro o José no restaurante do hotel, empertigado dentro de sua camisa alvíssima, punhos fechados por abotoaduras douradas, um cinturão com uma fivela de metal brilhante tão grande que faria inveja a Lampião, e enforcado por uma gravata borboleta.

-- O que temos para o almoço, José?

-- Feijoada !!!

José sabia que havia golpeado o ponto mais sensível de uma natureza fragilizada pela aridez gastronômica de Teresina PI dos anos cinquenta. Sua exclamação revelava a alegria de poder proporcionar uma satisfação, ainda que efêmera, a alguém que lutava pelo engrandecimento da comunidade à qual ele pertencia e dava sua eficiente contribuição. A feijoada estava perfeita. Preparada com o clássico feijão preto, ao contrário do mulatinho que se usa no Nordeste para as feijoadas, estava deliciosa. Uma festa! Mas, à medida que eu avançava nas garfadas parcimoniosas, parecia-me perceber sabores já conhecidos, usados, deflorados de longa data. Aos poucos fui-me convencendo de que estava diante de uma menina devassa, enfeitada com adereços que a criatividade do chef havia produzido. Armour! O nome explodiu-me dentro do cérebro.


-- José, a feijoada está deliciosa, ótima, perfeita. Mas, diga-me uma coisa, o feijão é de lata, não é?

-- Não, Senhor Luís. De maneira nenhuma!

Mais algumas garfadas, e minha dúvida crescia. Não me contive:

-- José, diga-me a verdade. È de lata?

-- Já disse que não, Seu Luis


A esta altura minha convicção se agigantava. Eu sentia minha reputação desmoronar, era uma questão de honra. Com mais duas caipirinhas tomei coragem e abri fogo:


-- José, é da Armour ou da Swift?

-- Seu Luís, já falei ....

Não o deixei terminar:

-- Posso falar com o cozinheiro, José?

-- Até com o Papa, se puder, com todo o respeito.


José afastou-se. Parecia aborrecido, e tinha razão. A cabeça me pendeu, derrotado. Continuei cabisbaixo, ruminando meus pensamentos. Eu me perguntava por que essa teimosia em esclarecer um assunto tão banal, quando a intrincada engenharia têxtil me apresentava desafios a toda hora. O que pensaria Santiago, em sua existência franciscana, se me visse discutir um assunto tão idiota enquanto os operários se arrebentavam no trabalho em troca de um salário miserável? Envergonhado, pensei resolver o problema com mais duas caipirinhas, quando percebi uma sombra que pairava sobre minha cabeça. Levantei os olhos. Era o chefe da cozinha.


-- É de lata, sim senhor. O senhor sabe, aqui não temos muitos recursos. Tudo -- vem do Sul, e nada chega em tempo. Aqui se come frango frito. O resto...

-- Não precisa se explicar, chefe. A feijoada estava ótima, seus peixes são sensacionais, seu pão é divino e a sua sinceridade vale mais do que toda a culinária do universo. E parabéns ao José, que apesar de maltratado como foi, teve a correção profissional de transmitir-lhe a minha dúvida.


Encontrei Santiago de cabeça baixa, entristecido, sentado junto ao carrinho de ferramentas que usava como escritório.

-- Bebeu demais, Santiago?

-- Não, seu Luís. Desta vez, não. Estava aqui pensando quando é que vamos conseguir alguma melhora com este trabalho todo. Ouvi o patrão comentando que a firma estava empobrecendo por causa da folha de pagamento. Não consigo entender, pois a produção está aumentando a cada dia.


Eu havia implantado, finalmente, e a duras penas, o sistema de pagamento por produção. A produção disparara. As tecelãs exultavam, cantarolavam alegres durante o trabalho. Todo o mundo queria aprender mais, trabalhar melhor, entrar mais cedo, sair mais tarde. Depois de três meses o “patrão” mandou-me chamar.

-- O senhor está arruinando a minha empresa. A folha de pagamento não para de crescer. É preciso fazer alguma coisa.


Fiquei estarrecido. Não sabia o que dizer. Não queria acreditar que houvesse maldade naquela afirmação. Mas não podia aceitar que houvesse tanta ingenuidade a ponto de não ver a proporção entre salários e receita. Disse-lhe, simplesmente, que falasse com seu contador que ele lhe explicaria o fenômeno.


Tentei mostrar a Santiago o tipo de dificuldade que estávamos encontrando. Que o maior obstáculo ao desenvolvimento da empresa era a própria empresa.

-- Não estou me sentindo bem, hoje. Se me permite, seu Luis, vou sair mais cedo e descansar um pouco”.


Era a primeira vez que Santiago saía antes da hora. Ele, que sempre ficava horas trabalhando após o expediente. Desconfiei que estivesse bebendo alem da conta e, após o fechamento da fábrica, percorri os botequins. Não encontrei ninguém. No dia seguinte, Santiago não estava na seção de cardas. Caminhei até a entrada da fábrica esperando encontrá-lo conversando com alguém. Não havia sinal. Não perguntei por ele a ninguém. Parecia-me uma profanação. Caminhei um pouco pela calçada. O sol faiscava. Vendedores de picolés, roletes de cana e frutas enfeitavam a rua. O cheiro de jaca feria as narinas. Fui-me deslocando, sem perceber, em direção ao casebre onde morava Santiago, no topo de um pequeno morro. Subi, lentamente, a curta ladeira. A porta estava entreaberta. Deitado no seu colchão de palha de milho, Santiago dormia. Seus olhos estavam arregalados e fitavam o infinito. Santiago dormia o sono eterno.


Quis o destino que, alguns anos depois, por força de um bilhetinho do Presidente Jânio Quadros, eu voltasse a Teresina com um grupo de trabalho constituído pela Sudene e o Banco do Nordeste. O bilhete era dirigido a Celso Furtado e dizia:


“ Senhor Ministro. Solicito constituir grupo de trabalho para examinar os problemas sociais e econômicos surgidos com o fechamento da fábrica de tecidos de Teresina”. Mas esta é outra história.

28 novembro 2006

Seu Albano, o Salvador

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Na Vila Maria, toda a molecada “chocava” bonde. A extensa planície da Avenida Guilherme Cotching (que nome!) prestava-se perfeitamente para a prática daquele maravilhoso esporte que, visto com os olhos de hoje, era muito mais arriscado do que qualquer corrida de Fórmula 1. Colocado num ponto estratégico do estribo do bonde, o praticante, (não quero chamá-lo de “chocador”), esperava que o bonde alcançasse uma velocidade compatível com as suas habilidade e coragem e, inclinando o corpo para trás para compensar a força da inércia que, caso contrário, o faria mergulhar de “ponta cabeça”, saltava. Ao alcançar o solo o corpo do atleta já deveria estar na vertical. A partir daí era só continuar correndo e amortecer a velocidade até parar. Ele tinha, ademais, que assegurar-se de que, na hora do salto, o caminho à sua frente estivesse livre. Não foram poucos os casos em que inocentes crianças, bondosas senhoras e trôpegos velhinhos foram abalroados, felizmente sem maiores conseqüências do que a ressonância dos impropérios dirigidos aos respectivos genitores. Éramos heróis. O mais novo (eu) tinha oito anos. O mais velho não devia estar muito longe dos quatorze. Competíamos todos. Classificavam-se os vencedores por grupos. O último a saltar, obviamente, era o vencedor. Na etapa seguinte os vencedores de cada grupo formavam um novo grupo e competiam entre si. E daí saia o Campeão da rodada. Ganhei algumas etapas mas nunca cheguei a Campeão. Tinha o Nestinho, que, com quatorze anos já era soprador na fábrica de vidros, calçava 44, e ganhava todas; tinha o Toninho, de pernas arqueadas e que pulava descalço, ágil como um serelepe, e muitos outros, todos difíceis de vencer. Um dia saltei mal. O bonde havia atingido uma velocidade que estava acima das minhas possibilidades de equilíbrio. Vi apenas o solo aproximando-se do meu rosto, senti o impacto tremendo no chão de terra e depois a derrapagem, de bruços, por um bom par de metros. Permaneci por um tempo com o rosto colado ao chão, as pernas e os braços ardendo em fogo. Percebi que, no alto, havia se formado uma roda de gente. Abri os olhos. Quatro botões dourados me ofuscaram a vista e, vagarosamente, me levantaram. Eram os botões das mangas do uniforme do Seu Albano. Seu Albano era português e morava ao lado da minha casa, um vizinho que nos orgulhava. Era guarda civil e eu admirava os botões dourados do seu uniforme azul marinho, sempre bem passado. Além de autoridade, Seu Albano encantava-me porque devia ter acesso a muitos livros, já que vivia sempre lendo. Seu Albano apalpou-me as pernas e, certificando-se de que eu podia permanecer de pé, avaliou os estragos. Tirou um lenço, enxugou, como pode, o sangue que me escorria dos joelhos e cotovelos, tomou-me pela mão e, lentamente, iniciou o caminho de casa. A subida da ladeira íngreme até o topo da Vila Maria foi penosa. Os joelhos ralados me ardiam como brasas. Eu não me sentia dono dos braços. Parecia que tinham passado à propriedade do Seu Albano. Eu escondia as lágrimas. Seu Albano não falava. Quando chegamos, era noite. Meu pai já havia voltado do trabalho. -- “Seu Guilherme, olha aqui este teu filho que anda a chocar os bondes. Estatelou-se no chão e, por pouco não racha a cabeça oca que tem. Tive vontade de dar-lhe uns cachações eu mesmo, mas só tu podes fazê-lo. Toma que é teu.” Meu pai levou-me para um pequeno aposento de terra batida que havia por trás da cozinha. Contemplou-me demoradamente. Depois levou ambas as mãos às costas, onde afivelava o cinturão. Eu, de cabeça baixa, fitava o chão, envergonhado. Seu Guilherme levantou meu queixo com o dedo indicador e, fitando-me firmemente, falou com voz entristecida: -- “Gino... você não pode chocar bondes... é... perigoso... e... muito feio. Mas... pelo menos... vê se aprende a chocar direito, seu salame!

24 novembro 2006

O FALSÁRIO

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 Comecei minha vida como falsário. Vivi todos estes anos escondendo um estelionato que me envergonha e me pesa na consciência. Nunca contei nada a ninguém. Mas agora a dor tornou-se insuportável.
Quero reparar o meu delito, ainda que não o possa fazer materialmente, mas, pelo menos, expondo-me à execração pública. Abro o meu sigilo bancário. Não só este, abro também o meu sigilo religioso, o ideológico, o doméstico e, principalmente, o de alcova, onde sempre me comportei com dignidade, respeito e pontualidade.

No final da década dos trinta, com dez anos de idade, a vida era mansa na Vila Maria. A única obrigação que eu tinha além de tirar água do poço para as necessidades diárias, molhar a horta, catar lenha para cozinhar três refeições, por magras que fossem, comprar pão na venda que não ficava a mais do que dois quilômetros de distância, picar cebolas, descascar batatas, engraxar os sapatos do meu pai, limpar o galinheiro, estender a roupa no varal, recolhê-la quando seca, lavar os pés antes de dormir, a única obrigação era, dizia eu, freqüentar a escola, esta sim que ficava a mais de dois quilômetros, para ser exato, a três. A pé.

Aos dez anos freqüentar a escola era, para mim, um prêmio que eu explorava ao máximo das minhas forças, com medo de que aquilo pudesse acabar. Cedo aprendera a ler, e os gibis, emprestados por colegas ou garimpados no lixo, satisfaziam a minha ânsia por desvendar os processos que punham a vida a funcionar. 
Por que a água virava gelo e o gelo virava água? Por que, quando eu apertava um botão, a luz acendia? Por que todas as noites, às onze horas, o trem da Cantareira apitava lá longe, como se estivesse chorando? Para onde ia? Por que o arroz que eu comia na casa do Seu Albano, o português vizinho, era mais gostoso do que aquele que minha mãe fazia? Por que a Itália ia entrar na guerra? 

Logo os gibis se mostraram insuficientes e eu descobri os livros de aventura. Estes eram mais difíceis de conseguir. Comprá-los nem me passava pela cabeça. Bastava contemplar minha mãe catando os tostões para comprar a mortadela que eu levaria como lanche para a escola para entender que, um livro, aquela fonte inesgotável de informações, capaz de explicar-me como viviam os animais na floresta, que os índios viviam nus e não ficavam doentes, que a terra era redonda e girava e, mesmo assim, a gente não caia quando ficava de cabeça para baixo, ora! Seria uma coisa simplesmente inatingível.

 Mas, aí, chegou o Café Jardim, com sua xícara fumegante em marrom escuro, sua nuvenzinha de vapor que parecia mover-se, seu pires de cor bege suave, tudo sobre um fundo amarelo que lembrava os campos de milho ao nascer do sol.
 Em baixo, do lado direito, poucas palavras: Café Jardim. Este é o café. E, de fato, era. Para contribuir com a difusão da cultura no país e, obviamente, aumentar suas vendas, o Café Jardim estava lançando umas figurinhas que, coladas em um álbum, contavam uma história.
Cada pacote de café trazia uma figurinha. O álbum devia ter, creio eu, de seis a oito páginas e, cada página, doze figurinhas. Cada página do álbum era uma história. 

Uma vês preenchido, o álbum podia ser trocado por um livro. Um livro de aventuras. E foi assim que, aos dez anos, eu me tornei o maior consumidor de café do planeta e o maior devorador de livros encadernados em brochuras “in octava”. Portanto, era preciso cortar as páginas para folheá-las, o que era feito com uma faca, quando em casa, ou com um pente, quando a bordo de um bonde. Foi, também, assim que fiquei conhecendo os heróis que encantaram tantas gerações. 
Quem não se lembra de Jack London, em “Caninos Brancos”, Robert Louis Stevenson em “Raptado’, Emilio Salgari com “O Corsário Negro”? E Karl Mai? e Rafael Sabatini? e Maine Reid? Devo estar errando a grafia de alguns nomes, mas eles sairam da minha vida há muito tempo.

Minha avidez pela leitura era tão grande que eu ficava esperando ansiosamente o dia em que meu pai chegava das compras com o cheiroso pacotinho de café trazendo a mágica figurinha. 
Devo esclarecer, a esta altura, e isto é muito importante, que a contribuição da minha família ao consumo do Café Jardim já era uma grande burla, posto que minha mãe, um gênio na administração das magras finanças domésticas, usava o mesmo pó duas vezes.
De madrugada preparava o café para meu pai e meu irmão, doze anos mais velho do que eu, antes de saírem para o trabalho. Mais tarde, usando o mesmo pó e calcando na fervura, fazia o café para ela e os filhos menores.

Mesmo com essa desvantagem eu ia completando meus álbuns e cavando meus livros. Mas, claro, havia as “figurinhas difíceis”, aquelas que demoram a sair ou não saem nunca, um mecanismo de tortura inventado pelos gênios do marketing obviamente com a boa intenção de ensinar as crianças que a vida não é mole, que você terá de esperar até que o tesoureiro do Café Jardim diga: “chefe, completamos a quota, pode liberar a figurinha”.
Enquanto a “figurinha difícil” não chegava eu via as duplicatas se amontoarem na minha caixa de papelão. E dane-se a beber café! E dane-se a comprar café! E dane-se a amontoar duplicatas! E nada da “figurinha difícil” aparecer! Aos meus dez anos de idade e, apesar das aulas de catecismo, parecia-me injusto. Comecei a procurar uma explicação.

E a explicação veio justamente das aulas de catecismo: Deus estava me castigando porque minha mãe usava o pó de café duas vezes!
É difícil descrever o que eu sentia. Sentia uma pena muito grande por minha mãe, com o seu engenho nas improvisações dos alimentos, sentia pena por meu pai e meu irmão que saiam de madrugada para uma fábrica insalubre e só voltavam tarde da noite, sentia pena por minhas irmãs ainda pequenas, a carinha suja brincando no chão de terra do porão da casa, improvisando bonecas com palha de milho . . .

Mesmo assim aceitei resignadamente a condenação já que, usando duas vezes o mesmo pó, minha mãe havia burlado as regras de consumo impostas pela sociedade e, com a redução fraudulenta do nosso consumo, o Café Jardim poderia ser levado à falência. Vejo-me, ainda hoje, triste, sentado no chão da cozinha, com as pernas cruzadas, o queixo entre as mãos, contemplando aquele retângulo branco bem no centro da página, aquele vazio imenso, aquele instrumento de danação , de expiação de uma culpa inconsciente. A “figurinha difícil”! Perdido em divagações, comecei a prestar atenção à história daquela página. Era uma das aventuras do Barão de Munchausen, o alemão bigodudo e simpático que contava lorotas.

Nessa história ele havia saído para caçar num dia muito frio, com temperatura abaixo de zero, e ao tocar uma corneta, creio eu que para atiçar os cães de caça, não ouviu nenhum som. Guardou a corneta sem maiores indagações. Ao chegar em casa tirou o capote, pendurou a corneta junto à lareira acesa e foi tomar seu chá. E foi aí que, com o calor da lareira, a corneta começou a tocar a melodia que, segundo explicações do próprio Barão, havia ficado congelada no seu interior. 
E eu ali, esperando que a corneta, figurinha difícil, me aparecesse para completar o meu álbum. Não sei quanto tempo fiquei segurando o queixo, pensativo, contemplando o vazio da figurinha faltante. Sei que me levantei e caminhei lentamente até o lugar que chamávamos de quarto de dormir e tirei, de debaixo da cama, a caixa de papelão onde guardava os álbuns velhos, já trocados por livros. 

O escritório do Café Jardim, onde se distribuíam os brindes, ficava ao lado da Estação da Luz. O sistema de troca era rápido e sem burocracia. Eu entregava o álbum a um funcionário que o folheava rapidamente para verificar se estava completo.
Feita a conferência colocava-o debaixo de uma perfuradora, acionava uma alavanca e a broca atravessava as figurinhas deixando um furo pouco menor que o diâmetro de um lápis. 
Em seguida colocava o álbum assim sacramentado juntamente com o livro escolhido dentro de uma grande bolsa de papel, a qual trazia estampada uma enorme xicrona fumegante do Café Jardim, em suas cores marrom, bege e amarelo, que eu me orgulhava de ostentar, mostrando aos passageiros do bonde a minha edificação cultural. 
Tudo muito simples, sem código de barras que a gente não sabe o que diz, sem plim-plim nem trek-trek de máquinas autenticadoras, sem precisar mostrar cartão de fidelidade, nem número de cadastro, nem carteira de identidade (só original, xérox não serve). Bebeu o café? Tirou a figurinha difícil? Tome o seu livro. Parabéns, garoto! Parabéns, Café Jardim! 

Eu já havia completado aquela história da corneta do Barão de Munchausem em um álbum anterior. Localizei-a nos álbuns devolvidos. Ali estava a figurinha que me faltava, com seu furinho bem no meio, sobre um campo vermelho do capote do astuto Barão.
Com a habilidade que eu havia desenvolvido ao fabricar meus próprios brinquedos descolei, com perfeição, a figurinha perfurada do álbum. Recortei, também, de outra figurinha um pedaço de fundo vermelho de igual tonalidade e colei-o no verso da figurinha, tapando o furo. Agora era só colar a figurinha restaurada no novo álbum. 

Fiquei contente com o resultado. Claro que havia o desnível na superfície do papel mas este só seria notado se alguém concentrasse a atenção naquela figurinha. Folheando rapidamente o álbum, como era feito, seria impossível detectar o enxerto. 
Grande garoto! Eu me sentia duplamente recompensado. Primeiro porque ia receber um novo livro encerrando, assim, um jejum de semanas sem leitura. Segundo porque eu me vingaria do desgraçado fosse-lá-quem-fosse que não emitia as figurinhas de acordo com um programa decente e honesto.

Orgulhoso da minha obra, coloquei a trapaça debaixo do braço e saí de casa com o ímpeto de quem ia invadir a Argentina. 
Desci a galope a lamacenta ladeira que liga o Alto de Vila Maria até o ponto final do bonde, lá bem no meio da várzea. Linha 34-Vila Maria! 
O bonde saiu dando pinotes de alegria, percorreu a extensa planície da Avenida Guilherme Cotching (que nome!) até alcançar o Rio Tietê, atravessou a estreita ponte de madeira, continuou mais um pouco e virou à esquerda, embicando pela Rua Catumbi, sempre em subida, até alcançar novamente a planície, na Avenida Celso Garcia. 
Já refeito do esforço de subida da Catumbi o bonde saiu deslizando suave e sereno como um cisne. Passou pela Igreja do Belenzinho, pela Estação do Brás e alcançou a Avenida Rangel Pestana. No trecho final da Rangel iniciava nova subida com uma inclinação tão acentuada, que eu temia que qualquer dia o bonde se desgovernasse e despencasse lá de cima espatifando-se somente quando chegasse no Campo do Corinthians. 
Vencida a ladeira, entrava-se na Praça da Sé, ponto final, o bonde dava a volta e retomava a ladeira em descida. O ponto de parada ficava em frente ao prédio da Caixa Econômica, em granito preto, como está até hoje. (pelo menos estava até a semana passada). 

Dali, caminhei a pé até a Estação da Luz, tomando o cuidado de não correr para não chegar suado e arfando, o que poderia causar suspeitas. Fui atendido por um velhinho de enormes sobrancelhas brancas, tão grandes que praticamente escondiam as pupilas. Melhor, pensei, assim me pouparia o confronto na hora da verdade, se houvesse. 

Coloquei o álbum sobre o balcão. O velhinho abriu um sorriso enorme, terno, generoso e tão paternal, que me confortou. Tomou o álbum nas mãos e, antes de abri-lo perguntou-me se eu já havia escolhido o livro. -- “O Corsário Negro”, gritei. -- "Ah! Salgari", ouvi-o balbuciar. Começou, então, a folhear o álbum, como sempre era feito. Senti-me seguro. Seria impossível notar qualquer coisa no meio de tanta figurinha.
Terminada a inspeção, fechou o álbum e, abrindo novo sorriso, fitou-me nos olhos, retesando o cenho para que eu pudesse ver bem suas pupilas escondidas atrás das sobrancelhas. Enfrentei o seu olhar com serenidade. Não percebia nele um tom acusador, mas, antes, uma certa curiosidade. 
Afinal ele já havia passado pela tramóia sem notá-la. Talvez fosse solidariedade pela minha escolha por ser ele também admirador de Emilio Salgari, quem sabe?

Permanecemos, assim, fitando-nos por um tempo que me pareceu uma eternidade e suas pupilas foram diminuindo, diminuindo, até que eu só via o emaranhado das sobrancelhas. O bom velhinho tomou, então, novamente, o álbum e começou a folheá-lo lentamente. 
Ao chegar na página do valoroso Barão de Munchausen, parou. Meu sangue gelou. Suas mãos ficaram imóveis. Ele fixava o centro da página. Eu tinha me transformado numa estátua de granito. Em nenhum momento ele me olhou. Pensei que ele fosse passar o dedo sobre o furo escamoteado para dar-me a entender que ele havia percebido o engodo. Mas não o fez. Eu baixei a cabeça envergonhado, preparando-me para as conseqüências. Ele, então, voltou-se, retirou o livro da estante, colocou-o, juntamente com o álbum, dentro da enorme bolsa de papel marrom, bege e amarela com a estampa da xicrona fumegante do Café Jardim, saiu de trás do balcão e, alcançando-me, pendurou a bolsa no meu ombro, deu uma palmadinha nas minhas costas e voltou ao seu balcão. Não disse uma palavra.

Eu sai cabisbaixo, contando as lajotas no chão. Arrastei os passos, lentamente, até a Praça da Sé. Entrei no 34 e desejei que ele nunca chegasse ao fim da viagem. Queria morrer ali mesmo. Passei pelo portão de casa. Minha mãe estava no tanque lavando os macacões sujos de graxa do meu pai e cantava, como sempre, “Son tornate a fiorire le rose”. Entrei no quarto, joguei o livro debaixo da cama e deitei-me. Ainda ouvi minha mãe cantar uma última estrofe: “Queste rose non parlano piu” e adormeci. Nunca mais tirei o livro de lá e nunca soube que fim levou. Estou lendo “O Corsário Negro”, agora, aos setenta e seis anos. Espero que o livro me faça bem.

28 julho 2006

MEU BANCO É PERFEITO

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TENHO POR ELE O MAIOR RESPEITO.  Sou cliente de banco desde 1952. Abri minha primeira conta no Banco Financial Novo Mundo. Ficava na Rua do Ouvidor, bem próximo da Avenida Rio Branco pelo lado de quem ia para as barcas. Nos dias de maior movimento, o tempo de espera para ser atendido era de dez minutos. Nos dias normais não passava de cinco. Eu entregava o cheque para ser descontado a uma donzela sempre sorridente, recebia uma ficha numerada, e me sentava num banco de madeira. Naquele tempo todos se sentavam, não só os velhinhos. O cheque viajava. Numa mesa conferia-se o preenchimento, noutra a assinatura, depois o saldo, e por aí vai, tipo corrida de revezamento. Mas, em menos de cinco minutos, meu número era chamado. Durante as décadas que se seguiram passei por muitos bancos. E continuo dependendo deles para sobreviver. Como poderia receber a generosa recompensa que o Sistema Previdenciário me proporciona (depois de ter contribuído a vida inteira pelo teto máximo e ser recompensado pelo mínimo, o que, pelos meus cálculos atuariais, me obrigaria a viver 125 anos para recuperar o que lá enterrei)? Como poderia pagar contas, declarar imposto de renda e efetuar tantas outras operações burocráticas que a vida moderna nos impõe, sem a proteção magnânima de um banco? Continuo, portanto, dedicando uma parte considerável do meu tempo e, principalmente, da minha energia aos bancos. Mencionei o tempo, mas devo ser justo: o tempo gasto nas filas de banco até tem diminuído. Não graças aos terminais eletrônicos, que foram colocados inteligentemente do lado de fora, mas, graças à internet. Porque quando criaram os terminais, os bancos criaram também as filas dos terminais, as quais resultaram maiores que as filas dos caixas. E criaram também a curiosa figura da funcionária que percorre a fila dos caixas com a penosa missão de deslocar o cliente dali para o lado de fora. - Posso ajudar, vai fazer algum pagamento? Por que não usa o terminal? - Porque a fila de lá está maior do que esta. Cansado de dar explicações sobre as minhas preferências pessoais no que se refere ao sofrimento humano, decidi livrar-me do incômodo de uma vez por todas: - Posso ajudar, vai fazer algum pagamento? Por que não usa o terminal? - Só respondo na presença do meu advogado! Certa vez descobri que podia dar uma contribuição ao Departamento de Marketing do meu banco. Eu estava no balcão, esperando ser atendido, quando uma graciosa donzela (igual à do meu tempo do Financial, justiça seja feita) aproximou-se, e, reconhecendo-me, atacou: - Senhor Luigi, que bom encontrá-lo! Eu vi que o senhor não tem um seguro com a gente. O senhor precisa fazer um seguro! - Por que eu deveria fazer um seguro? - Ora, porque se o senhor vier a faltar, que Deus o livre, os seus filhos ficarão protegidos. - E como é que eles vão ficar protegidos se eu não vou estar aqui para protegê-los? - Veja: o senhor paga o seguro, mensalmente, de tanto, e se o senhor vier a falecer, que Deus o livre, os seus filhos vão receber tanto e tanto pelo seguro. Entendeu? - Não. Deixe-me ver. Eu pago, mensalmente, um tanto, durante tanto tempo, e, pelo tanto que eu ainda pretendo viver vou ter que desembolsar um tanto considerável da minha magra aposentadoria justamente quando, pelas deficiência da idade, mais preciso dela. E aí, quando eu morrer, eles vão receber essa bolada toda e gozar a vida? Não, decididamente tem alguma coisa errada nisso. - Mas é assim que funciona, Seu Luigi! - Não, não. Se você quiser fazer um seguro comigo, você tem que fazê-lo em nome do meu pai. Em nesse caso, eu pagarei a mensalidade, não ele. Aí, sim, quando ele morrer eu é que entro na bolada. É justo. Fui eu que paguei por ela. Dessa forma eu faço o seguro. Os olhos da moça brilharam. Logo puxou um formulário e gritou: - Perfeito! Como é o nome dele? - Guglielmo... g, de Gaspar, u, de Urbano.... - Casado ou solteiro? - Viúvo. - Local de nascimento? - Villa Bartolomea, província de Verona, Italia. - Data de Nascimento? - 28 de Janeiro de 91. - Como 91? - Ah! Desculpe, 1891. - Como? Quantos anos ele tem?! - Não sei, preciso fazer as contas. Acho que dá ... 95. - Ah! Mas assim não pode! Meu pai morreu com 101 anos. Não fez o seguro nem eu recebi a bolada. Mas foi o banco que não quis.

21 julho 2006

Poema Controverso


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Se eu pudesse amar, amaria tudo
Mas amaria você, sobretudo
Amaria as crianças que riem, os velhos que choram
O barulho das fábricas, o silêncio da noite
Os sapos no charco, as estrelas no céu
As gotas de orvalho nas folhas das rosas
E os raios de sol nas manhãs preguiçosas
Se eu pudesse amar, amaria tudo 
Mas amaria você, sobretudo
Amaria o teu ar de menina travessa 
Teus olhos incertos, teu cabelo sem cor
E tua boca rasgada, sempre a dizer pecados
Se eu pudesse amar, amaria, até mais não parar
O próprio Deus que me fez incapaz de amar.

17 julho 2006

O CAMINHO DE COMPOSTELA




Meus amigos: Vou estar ausente por dois meses. Depois de tanto tempo garimpando entre bites e baites, daunilodes e apilodes, e receber ameaças do tipo: “Erro fatal. Se você apertar novamente controlaltidel todos os seus dados serão apagados, sua poupança será confiscada, e sua família será excomungada. Clique “finalizar” para sair de fininho, ou, para sair com dignidade, volte à sua terra natal, beije os pés do padre e cuspa três vezes na porta do cemitério entre meia noite e uma hora (pelo lado de dentro)”. Percebi que estava no caminho errado. Decidi, então, tomar o caminho certo. E esse caminho só podia ser de Santiago de Compostela. Observei que muita gente se deu bem depois de fazer essa peregrinação. Por que não eu? Nunca li Paulo Coelho, a não ser por pequenas notas e historietas, tipo assim, “pingos de sabedoria”, publicadas em revistas de domingo de jornais de grande circulação, Mas o resultado dos seus escritos está aí para quem quiser ver. O sucesso que o envolveu após a peregrinação a Compostela é indiscutível, pois, feita há tantos anos, repercute até hoje, e ainda lhe rende assunto para as tais notas domingueiras. Soube que até o Clinton (aquele que foi condenado ao onanismo), era seu leitor. Como a minha principal virtude é a inveja, minha alma se incendiou. Resolvi, imediatamente, fazer a peregrinação a Compostela. Munido de guias, panfletos e consultas exaustivas a agências de turismo, comecei a preparar o meu “budget” (foi assim que me ensinaram na agência de viagens). Nada de extraordinário, apenas o trivial: algumas saladas acompanhadas de presunto Capa Negra, muitas paellas, as tapas imperdíveis da Andaluzia, uma rápida passagem pelo “El Buli”, em Barcelona (ir a Santiago e não dar uma esticadela para cumprimentar o Ferran Adriá, poderia comprometer todo o meu o processo de elevação espiritual). Acompanhariam as manducações diárias umas quantas taças de Rioja, um ou outro Valdepeñas, depois viriam os Tempranillos, principalmente os da Tierra de Extremadura e, glória final, um Pata Negra Gran Reserva, safra 95, um homônimo do grande presunto. Não mencionei os jerez (finos, olorosos e amontilados ) porque, como estes são tomados antes e depois das refeições e durante o dia, nos momentos alegres e tristes, (o que é a vida senão uma sucessão de momentos alegres e tristes?) mereceriam um orçamento em separado. Feitas as contas, ao contemplar o resultado, o líquido que circula na medula espinhal se me congelou, e eu fiquei algum tempo sem poder mover o pescoço nem bater as pestanas. O raciocínio, “sin embargo”, continuava funcionando. Na Espanha eu não tenho parentes que me possam hospedar e não creio que fosse possível, nos dias de hoje, bater à porta de um mosteiro e pedir abrigo para um peregrino faminto. Como não me deixo abater facilmente, encontrei um caminho alternativo. Vou fazer o Caminho da Mortadela, uma rota que corta a província de Bolonha, entre vinhedos e olivais. No lugar do Capa Negra (o presunto) terei de me consolar com a redonda mortadela, que tanto alegrou minha penosa infância e que aqui empresta seu nome ao que será , um dia, um famoso roteiro. Quanto aos vinhos, me contentarei com um Amarone della Valpolicella e, quem sabe, um Brunello di Montalcino. Um pouco mais ao norte, com muita sorte, quem sabe, toparei com um Gewurztraminer do Alto Ádige para acompanhar os peixes do Lago D’Iseo. Mas, uma coisa vou fazer, com certeza: dar uma esticadela até San Gemininiano para, no interior de suas muralhas medievais, saborear uma polenta taragna. E, aí, com todo o respeito, vou pedir um Gattinara, safra 94. Não sei o quanto esta peregrinação vai me engrandecer o espírito. Mas o corpo, certamente, voltará engrandecido. Até a volta!

16 julho 2006

LETRAS MIÚDAS DO CONTRATO

“Pai, vamos esperar o sol nascer?”
“Vamos, filho, vamos.”

Era o Caio, beirando os nove anos, que convidava o pai para mais um programa selecionado entre os tantos que ele, um inveterado admirador da natureza, vinha lhe proporcionando desde tenra idade. O nascer do sol já havia sido contemplado de muitos lugares: da praia do Arpoador, da Praia da Barra, das montanhas de Nova Friburgo e não sei mais de onde. Desta vez, seria da janela do apartamento. Decididamente Fernando havia transformado o filho num grande apreciador da natureza, respeitador da fauna e da flora, em duas palavras, um filho ecologicamente correto. Eu, tio avô, me orgulhava muito do Caio, não só por aquelas qualidades, mas também pela sua vivacidade e rapidez de raciocínio, além de uma reveladora habilidade para contar piadas.

Eram onze horas provavelmente. O pai lia o jornal. Caio caminhava de um lado para outro, excitado, prelibando o espetáculo na companhia confortadora do pai. Este, depois de alguns momentos, dobrou vagarosamente o jornal, encaminhou-se para o quarto, e deitou-se para dormir.

“PAI!? Você não disse que ia esperar o sol nascer?” 
“Disse, meu filho, e vou. Vou esperar o sol nascer, aqui na minha cama, porque é mais confortável. Você não me perguntou se eu queria “esperar” o sol nascer?. Então, você pode fazer a mesma coisa. Agora, se você quiser “ver” o sol nascer, você pode ficar lá na janela. De lá você vê.

E, amorosamente, enfiou-se em baixo das cobertas. E Guilherme, o irmão mais velho, que contemplava a cena, apontando o dedo para o nariz de um desapontado Caio, com voz solene e pausada:
“Letras miúdas do contrato, Caio, Letras miúdas do contrato!”

15 julho 2006

Muita banana por um tostão não é delícia !

Por volta dos anos 30, a Vila Maria era, para mim, um pedaço do Éden. Por maiores que fossem as agruras da infância paupérrima, não havia tempo para sofrê-las. A vida era tão cheia de vida, e eu me via crescer aprendendo coisas em ritmo tão alucinante que não me sobrava tempo para desgostos. Isso significava esculpir brinquedos de madeira a canivete, montar patinetes com rolimãs surrupiados ao meu irmão maior, molhar a horta com água puxada a sarilho de um poço, ralar queijo e fechar os raviólis nos almoços de domingo, ir comprar pão sem comê-lo pelo caminho, fazer bolas e mais bolas de meia para suprir as peladas de fim de tarde. Quando aprendi a ler, o mundo se alargou. E me tornei um grande devorador de Gibis, penosamente garimpados entre os amigos, ou encontrados no lixo, e consumidos, em êxtase, à luz de uma vela. Para elevar o meu padrão de consumo intelectual meu pai, aos domingos, me fazia ler o jornal e foi assim que, aos oito anos, tomei conhecimento de que se iniciava uma guerra. Só não conseguia entender o que era uma guerra. A Vila Maria era a minha Pátria. São Paulo era apenas uma paisagem. Uma paisagem deslumbrante. Da minha casa, encarrapitada no topo da colina, contemplava-se, lá em baixo, a imensa várzea cortada pelo Rio Tietê. A planície, aos poucos, ia se mimetizando, ganhando paralelepípedos, calçadas, casas, prédios, arranha-céus. Era o Centro de São Paulo! À noite, milhões de pontos luminosos faiscavam flutuando no espaço negro do universo. Eu tinha o mundo a meus pés. A Vila Maria dos anos trinta era um modelo de integração racial. Ali conviviam, xingando-se alegremente, portugueses, vênetos, calabreses e ainda uma família alemã, permanentemente ocupada em fazer geléias de frutas para sobreviver no inverno. Os portugueses predominavam. Eram, em sua maioria, motorneiros ou condutores de bondes. Motorneiro era, obviamente, o motorista e, como tal, a despeito do título do seu colega de trabalho, era quem conduzia o bonde. O condutor cobrava as passagens, e as registrava puxando uma alça de couro colocada sobre a cabeça, ao longo do carro, presa a um eixo que, por sua vez, acionava um relógio marcador. Cada registro produzia um sonoro “plimm!”. Cada plimm, uma passagem. Os condutores juntavam várias passagens para, só depois, marcarem os plimms correspondentes. A cada plimm, uma passagem. Alguns passageiros contavam atentamente plimms e passagens e concluiam que o condutor estava roubando. Cada um construía sua casa com a ajuda de todos os vizinhos com os quais não estivesse brigado. Assentavam-se os tijolos com barro e, depois de concluído o telhado, fazia-se a festa da “cumieira”, com muito chops e pastel. Eu ajudava a pisar o barro, freneticamente, com receio de que o menor grumo que permanecesse na massa pudesse comprometer a estrutura de tão complexa obra. Foi aí que aprendi a minha primeira lição de ciências humanas – a transitoriedade da vida: “Tudo no mundo é passageiro, menos o condutor e o motorneiro”. Como passageiro aprendi também alguns conselhos úteis, em forma de provérbios, que vinham estampados na parte posterior dos bancos: “Amor com amor se paga” e “Prevenir acidentes é o dever de todos” O Vila Maria era o 34. Percorria toda a planície da várzea pela Avenida Guilherme Cotchíng ( que hoje chamam Cótching, que Deus a guarde), galgava o Rio Tietê por uma ponte de madeira, subia a Rua Catumbi, virava à direita para entrar na Celso Garcia, passava pela Estação Roosevelt (ou seria a Estação do Norte?) de trens, alcançava a Rangel Pestana, subia a ladeira íngreme do último trecho e resfolegava no plano repousante da Praça da Sé. Contornava o prédio da Caixa Econômica, todo em granito preto como está até hoje e iniciava o caminho de volta. Pelo lado oposto da colina, em descida íngreme por vielas de terra, chegava-se ao Brejo. Era um alagado coberto de juncos e habitado por duendes e fadas que se reuniam, à noite, para ouvir a sinfonia das rãs. Era ali que ficava a chácara do hungarês, que criava vacas e vendia leite. Era hungarês, não húngaro. Nunca se lhe soube o nome. E foi com ele que aprendi a minha primeira lição de micro-economia, mais precisamente, o capítulo qualidade-preço. Questionado por uma calabresa magra como um envelope aéreo, sobre o preço que cobrava pelo leite, maior do que o da carrocinha que o entregava na porta, ele a olhou fixamente nos olhos, uniu os cinco dedos da mão direita, levantou-os até a altura da boca para abri-los numa explosão, tal como desabrocham as flores em câmara rápida que se vê na televisão e, unindo a palavra ao gesto, estalando a língua, decretou: “Muita banana por um tostão não é delícia!” 

10 julho 2006

DE GENTE E DE BICHOS

“Me dá dez tostão de pingaEngoliu o líquido num trago. Deu uma cuspidela oblíqua que acertou em cheio no dorso do cachorro cujo pelo abundante escondia o corpo esquelético.

 O cão marchou até a porta carregando o estigma do seu amor pelo dono. O amor incondicional. O amor que não discute. O amor que não faz perguntas. O amor insensato. “Falta ainda meia hora”, pensou.
“Me dá uma salsicha”Mordeu a extremidade umbilical da salsicha e cuspiu-a sem alvo visado.
 Ricocheteando por entre sacos de cereais o apêndice foi alojar-se sobre uma pilha de tamancos de madeira que, pela poeira que a protegia, devia estar completando o quinto ano naquele nobre estabelecimento.
Com dois botes fez desaparecer o resto da salsicha na boca enorme.
“Bota um traçado”

A cusparada partiu veloz pelo canto esquerdo da boca. Não encontrando o amortecedor peludo do cão acabou formando uma rosácea no chão de cimento, espécie de marco geográfico a ser conquistado pelos fregueses que, ao entrarem, primeiro hesitavam para depois galgá-lo com ar triunfal e uma indisfarçável expressão de dever cumprido.

“Bota outro” O cão voltou de cabeça baixa, cheirando o chão. Contemplou o dono.
”Talvez falte mais de meia hora, repensou”.
Olhou o balcão. Percebeu o copo quase cheio. Avaliou a tonalidade do nariz. “Uma hora, pelo menos”, concluiu por fim.
Encolheu-se a uma distância prudente das cusparadas.

“Enche o copo!” Fungou. Tentou coçar as costas, perdeu o equilíbrio mas conseguiu apoiar-se nos sacos de feijão. Reconquistou a distância perdida, agarrou o copo com as duas mãos e bebeu tudo num trago só. Escancarou a boca engolindo uma golfada de ar. Havia alcançado o estado de graça.

“Ahhhhh!” Cuspiu o resultado da oxidação. Cambaleou, procurou apoio na estante do macarrão a varejo e afundou o braço no alfabeto para sopa. Letras se espalharam no chão formando criptogramas para a posteridade. O cão saiu do seu esconderijo lambendo os beiços. Contemplou o dono com olhar compassivo. “Está na hora de levá-lo”, pensou.

 Foi até a porta como quem verifica se o caminho está livre. Voltou e começou a roçar delicadamente nas pernas do patrão. Depois de alguns movimentos recebeu um ponta-pé que o autorizou a cessar os sinais de advertência e tomar o caminho de casa.
Acompanhou o dono até a saída. Na porta o cão olhou ainda uma vez para dentro do armazém. Viu que, atrás do balcão, um bigode se contorcia em exclamações:
“É um nulo! È um nulo, que se há de fazer!”
E, abaixando a cabeça, envergonhado, correu para alcançar o dono que não ia longe.