16 abril 2012

Subiu aos céus e está sentado ...

Encontrei o Severino sentado num banco da praça, pensativo. Tinha um olhar melancólico voltado para as curvas que delineiam os picos da Floresta da Tijuca, àquela hora apenas uma silhueta negra desenhada sobre o fundo azul da tarde. Nos joelhos um grosso livro, aberto.
-  O que você está lendo, Severino?
- Os Sertões. Estou relendo. Tem uma frase aqui, do Antonio Conselheiro, que me  lembrou o Pacheco. Você o conheceu bem, não foi?  
-  Por onde anda aquele santo? Nunca mais o vi.
-  Eu o encontro de vez em quando. Coisas estranhas estão acontecendo com ele.
-  Vocês eram muito amigos?
- Trabalhamos no mesmo projeto em Fortaleza: desenvolver o Nordeste, industrializá-lo, redimi-lo da dependência econômica em relação ao sul... Pacheco só pensava no trabalho. Moramos no Hotel Iracema, antes que o mar invadisse a praia. Trabalhávamos por prazer, nem sabíamos qual era nosso salário, você acredita? Nossa única diversão era recitar poesias para as mariposas  da rua Major Facundo.
Naquele tempo havia romantismo até nos bordéis. Depois as coisas mudaram. Eu viajei e nunca mais o vi.

Pois é. Depois que as coisas mudaram ele comprou uma roça perto da minha, no Brejo da Madre de Deus, logo depois de Caruaru, e passou a viver dela. Certo dia, quando acordou, encontrou tudo seco. A plantação tombada, os canais de água secos, a terra calcinada, os poucos animais que criava, mortos. Não havia marcas de trator, não havia sinais de depredação, nada que pudesse indicar a ação do homem. Não havia explicação, aquilo só podia ser obra de feiticeiro. Pacheco passou dias recolhido, não queria falar com ninguém. Finalmente, desolado diante da dificuldade que teria para recuperar suas terras, resolveu vendê-las ao seu vizinho. Ao apresentar-se no banco para depositar o valor que havia recebido, Pacheco foi informado de que não havia nenhuma conta em seu nome naquele banco. Assustado, perguntou pelo saldo que havia deixado e a resposta foi a mesma: não há saldo. Sem se preocupar com os tostões que havia perdido, Pacheco pediu que lhe abrissem uma nova conta. Um gerente com olhar de fuinha respondeu secamente: “impossível” – e um segurança o acompanhou até a porta.
Ao chegar em casa, Pacheco descobriu que todos os seus cartões, de crédito, débito, plano de saúde  e o que mais fosse, haviam desaparecido da sua carteira. Tudo muito esquisito.
-  E o que fez o Pacheco?
- Nada. Em lugar de revoltar-se, Pacheco se adaptou às novas formas de consumo. Aderiu à caderneta da quitanda, liquidando a conta no final do mês, com dinheiro vivo. Permaneceu recolhido mais alguns dias, até perceber que lhe haviam cortado o telefone. Mas ele não se abalou. “Foi melhor assim – disse-me ele – não preciso mais chamar ninguém e estou livre dos chatos” – e desferindo golpes de capoeira, entoando sons de berimbau, começou a cantarolar: “ oi,  quem quisé mi vê, arrudeia o mar treis vêis”.
Achei que ele tinha enlouquecido. Procurei investigar junto aos vizinhos. Todos disseram que o comportamento dele era normal e que ele não se queixava da vida. Concluí que, apesar de  todas as desgraças, Pacheco vivia  feliz.
Só que, depois disso, pararam de entregar-lhe a correspondência. O jornal do qual era assinante, não estava mais sendo entregue. Perguntou pelo jornal e lhe disseram que não havia assinatura alguma em seu nome.
Passou-se o tempo. Um dia encontrei o Pacheco na mesma praça, cercado de gente, recitando “Negra Fulô”, de Jorge de Lima, o alagoano que você conhece. Quando terminou, tomei-o pelo braço e saímos caminhando. Eu queria entender o que estava se passando com aquele homem, um grande amigo, agora totalmente estranho. Que misterioso desígnio era aquele? Que feitiço o havia contagiado, por que não sofria com todas aquelas mazelas? Queria saber como poderia ajudá-lo, como poderia atenuar seu sofrimento. Nada. Ele se mostrava imperturbável. Eu lhe fazia perguntas, ele não respondia. Quando lhe pedi que me explicasse a origem daqueles fenômenos e a razão daquele comportamento ele me olhou espantado e disse – “Que fenômenos”? Depois baixou a cabeça, pensativo. Por fim me encarou com seu olhar triste e desabafou:

“Não sei explicar isso, Severino.  Para mim são apenas sinais de que o homem está desmoronando. Somos incompetentes para aproveitar o que a natureza nos oferece e impotentes para controlá-la. O globo terrestre nos oferece um potencial infinito de energia através dos raios solares e nós ficamos construindo usinas atômicas. Se vem uma chuva mais forte as cidades se alagam e nós ainda não encontramos a forma de  aproveitar essa água e evitar a catástrofe. Nas grandes cidades bueiros explodem por  culpa de um gás que o próprio homem ali gerou e ninguém sabe o que é.  Edifícios desmoronam porque um empreiteiro desonesto roubou no cimento ou um engenheiro incompetente calculou mal as estruturas. O avanço tecnológico, produzido por um grupo de cérebros privilegiados, está imbecilizando o resto da humanidade, que desaprendeu a raciocinar. Diariamente ceifam-se vidas em atropelamentos e choques de veículos pelo uso inadequado do automóvel, essa estrovenga complicada e obsoleta; onde já se viu gastar energia para deslocar um peso de 1.200 quilos para transportar uma pessoa de 70 quilos?  Ao contrário do que muitas pessoas pensam, eu não estou sendo castigado pelo que está me acontecendo. Estou apenas me libertando dos grilhões que me humilhavam. Sei que não sirvo como membro da sociedade. Sou um asceta compulsório no meio da multidão e da abundancia. Não me beneficio com convívio da primeira nem usufruo das benesses da segunda.” 
Quando terminou vi que o Pacheco chorava. Limitei-me a abraçá-lo.

- Mas como é que o Pacheco consegue sobreviver nessas condições, suportar  essas desgraças ?
-  Ele não vê desgraça nenhuma nisso tudo, nem se preocupa em saber o que está acontecendo. Ao contrário, ele acha que  a humanidade seria mais feliz se todos passassem por essas experiências.
-  E os amigos dele, o que dizem ?
- Os amigos o abandonaram. Passam por ele e fingem que não o conhecem. Estranha relação essa. Ele passa por todos sorrindo, com aquele olhar diáfano que enche a atmosfera, contagiando o universo. Mas a coisa não terminou aí. Não demorou muito e lhe cortaram a água. Ele ficou sem poder sair de casa até que um vizinho passou-lhe uma mangueira e ele ficou abastecendo a sua caixa. E, em seguida, cortaram-lhe a luz e o gás.
Sem poder cozinhar, passou a alimentar-se de cruezas, com predominância de sementes oleaginosas. Inventou também o  piscafé, uma combinação letal de café solúvel,  pisco,  limão, açúcar e clara de ovo, que ele compartilha com um  vizinho em troca de gelo.
Quando o vi pela última vez encontrei-o esquálido, com as pupilas flamejantes saltando das órbitas, Pacheco declarava-se  feliz. Estava liberto de todos aqueles instrumentos que a sociedade lhe impunha. Ria e recitava trovas onde anunciava que o homem, na volúpia da tecnologia, esquecera-se de si mesmo. E no lugar de “o sertão vai virar mar”, como dizia o Antonio Conselheiro, ele gritava : “a cidade vai virar pó e o homem se desmanchará num vasto mar de orvalho”.

Despedi-me do Severino e comecei a pensar no que poderia ter acontecido com o Pacheco. Ele era uma pessoa introvertida. Não tinha família e só vivia para o trabalho. Não conhecia domingos nem feriados. Certo dia levou-me para conhecer os mocambos do Pirambu, nos arredores de Fortaleza. No primeiro em que entrei a cena era estarrecedora: crianças de dois a três anos,  nuas, sentadas no chão de terra ciscavam restos de comida. Os mocambos se sucediam, intermináveis. Pacheco olhou-me com olhar inquiridor:  “Como é que vocês pretendem resolver isto? Com Socialismo? Comunismo? Capitalismo? Democracia cristã? Anarquismo? Revolução armada? Resistência passiva? Desobediência civil? Kibutz? Igrejas Universais? Opus Dei?”
 Afastei-me em silêncio. Esta foi a última vez que vi o Pacheco.

Mais por curiosidade do que por piedade, pedi ao Severino que convidasse o Pacheco para ficar na minha casa, na Serra,  por alguns dias. A resposta veio rápida. Aceitaria de bom grado, com duas condições: Que eu fosse buscá-lo e que não fizesse perguntas. Fui buscá-lo levando, por precaução, um generoso estoque de sementes de girassol e ameixas secas. Recebeu-me com um largo sorriso. Antes de me abraçar agachou-se e fez um gesto de quem levanta um alteres, lembrando a ginástica que fazíamos todas as manhãs na praia de Iracema.  Olhou-me severamente e caiu na gargalhada. Não disse palavra.

Pacheco acordava cedo. Comia pouco. Não falava nunca. Sorria sempre. Saía todas as manhãs e percorria as colinas do vale caminhando lentamente. À tarde distribuía comida para os passarinhos e sentava-se à sombra do bambuzal para ouvir o canto dos sabiás.
Um dia não voltou. Foi encontrado no topo do Pico da Caledônia.  Sentado à mão direita... a salvo do bem e do mal.



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