05 dezembro 2010

Aldenor, o Messias

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Aldenor morava com cinco mulheres. A esposa, a mãe da esposa, uma irmã da esposa, uma sobrinha e uma enteada. Não tinha filhos. Todas o amavam, e o serviam, e o seguiam como se fosse um novo Messias enviado especialmente para redimir mulheres. Sempre magnânimo, Aldenor distribuía sorrisos, afagos, carinhos, amor no seu sentido mais elevado e, sobretudo, justiça. Morava num casarão colonial onde a harmonia preenchia todos os espaços.

Trabalhávamos juntos na Carteira de Crédito Industrial do Banco do Nordeste, em Fortaleza, na Rua Major Facundo, onde o jovem Severino curtia as noites com poemas, risadas e muita cerveja.
Minha base de trabalho era o Recife e eu viajava com freqüência para Fortaleza onde permanecia uma semana ou pouco mais. Eu me hospedava no hotel que ficava no final da rua Major Facundo, outrora aristocrático, mas que ainda conservava sua posição: de frente para o mar.
Certa ocasião o Aldenor me disse:
-- Galego, na próxima viagem você não vai para hotel. Vai ficar hospedado lá em casa.
Agradeci muito, não queria causar incomodo , essas coisas, mas não houve jeito. Ao desembarcar o Aldenor estava no aeroporto me esperando. Fiquei contente, até porque não conseguia esconder uma curiosidade mórbida: descobrir como é que ele administrava uma casa com cinco mulheres.
Solícitos ao estremo, tanto ele como sua esposa Maria desdobravam-se em atenções, cuidando dos menores detalhes para que eu me sentisse à vontade sem, contudo, exercer qualquer pressão. Cuidavam especialmente da cozinha. Entre as iguarias que a Maria preparava estava a paçoca, prato preferido do Aldenor. Embora tivesse esse nome a paçoca do Ceará não era a paçoca conhecida no sul, feita de amendoim e açúcar. Aquela era uma combinação de carne seca e farinha de mandioca socadas num pilão. Era usada pelos jangadeiros que saiam diariamente em busca de lagostas. Nós comíamos paçoca todos os dias. Estou exagerando. Não era todos os dias. Dos oito dias que passei lá só comi paçoca em sete deles.
Certamente a memória organoléptica do Aldenor não era das melhores porque certo dia, na hora do jantar, o único jantar em que a paçoca não compareceu ele virou-se para a esposa e disse:
-- Amôooor! Há quanto tempo você não faz uma paçoca, você poderia preparar amanhã, estou sentindo falta. E a paçoca retomou o seu curso.

Na véspera da minha partida – eu viajaria às seis horas da manhã – Aldenor declara:
-- Amanhã vou lhe deixar no aeroporto.
Recusei peremptoriamente:
-- Não vou permitir, vou chamar um taxi e...
-- Nada disso. Tomamos café com o bolo que a Maria fez...
-- Pior ainda. Não posso deixar que a Maria acorde a essa hora para fazer café, eu tomo no aeroporto.
A discussão não terminava, eu não conseguia persuadir o Aldenor. Eu me sentia realmente mal com o incômodo que estava causando e resolvi apelar para um argumento que causasse impacto. E saí com esta idiotice:
-- Escuta, você não pode me levar no aeroporto amanhã, sabe por que? Porque, para começar, vai chover durante a viagem, depois vai furar o pneu do carro e, se duvidar, você ainda é capaz de bater com o carro na volta.

O Aldenor não dirigia, só andava de taxi e, assim, na manhã seguinte o taxi estava na porta. Embarcamos em silêncio, eu ainda constrangido. A Maria nos acompanhava.
Chegamos, retiramos a bagagem e ficamos sob uma marquise, a dois metros do taxi, fazendo nossas despedidas. Depois do último abraço, quando já estava para sair, percebi que uma chuva fininha começava a cair.
Lembrei-me das bobagens que eu havia falado e não deixei por menos:
Está vendo, Aldenor, já começou a chover. Agora só falta furar o pneu...
--PPPPffffffff...fffff...ffff...fff...ff...f...!
Todos olharam para o carro a tempo de ver o pneu traseiro direito baixando...baixando...
Só me lembro da voz do motorista, perfilado ao longo de seu carro:
-- Que boca!
Encontrei o Aldenor quando veio ao Recife, duas semanas depois:
-- Você não sabe mas naquele dia, quando voltava do aeroporto, a chuva engrossou e um carro que vinha numa transversal derrapou, e quase nos acerta.

Sei que alguém poderá não acreditar nesta história. Não me ofendo por isso. Eu mesmo passei a vida me perguntando como foi que isso aconteceu. E se o escrevo é porque quero que fique registrado. Tenho medo de que um dia eu mesmo chegue a pensar que isso nunca aconteceu. Perguntem ao Aldenor.

Severino Mandacaru






Um comentário:

  1. O nome disso é boca de praga mesmo! Pobre do Aldenor que ainda bem que tinha um bom karma e o acidente não aconteceu! 🤪

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