12 dezembro 2009

AS VOZES DO ALÉM

Nas freqüentes viagens que fazia do Rio de Janeiro para Tókio, eu precisava pernoitar em Los Angeles ou em San Francisco, na Califórnia. Sempre que podia, eu optava por San Francisco. “Frisco”, como a chamavam os americanos, com seu lindo sol e suas chuvas inesperadas tinha, para mim, um encanto particular. Vez por outra eu arranjava um modo de permanecer mais de uma noite para cumprir os dois programas que mais me fascinavam: Contemplar a ilha de Alcatraz a partir da amurada do continente, onde eu ficava estudando fugas heróicas e mirabolantes, e dar umas voltas no clássico bondinho, o cartão postal da cidade.

 O passeio de bonde subindo e descendo aquela colina no centro da cidade tinha, para mim, um encanto especial. Levava-me de volta aos meu doze anos no bonde da Vila Maria, com todas as suas recordações, o vento frio no estribo, o trabalho árduo, as longas caminhadas pelas estradas de terra, a vida dura na penúria da família. San Francisco era uma cidade mágica. Numa dessas viagens não foi possível pernoitar lá
. A Japan Airlines informou, de última hora, que faríamos a conexão em Los Angeles. Embarquei meio acabrunhado. Mas ao chegar ao hotel, em Tókio, o Imperiaro Hotero me reservara uma surpresa.

 Eu já estava acostumado às monumentais exposições que o hotel preparava em seus amplos salões, mas com essa eu não contava.
 No espaçoso saguão que precede o restaurante onde é servido o café da manhã – é bom saber que o Imperial Hotel tem 4200 apartamentos – haviam instalado nada mais nada menos que um exemplar do bondinho de San Francisco, autêntico, montado sobre trilhos de verdade. Naquela manhã eu havia acordado com excelente disposição para o trabalho, estava desligado de qualquer preocupação.

 Eram seis horas da manhã, não havia uma alma. Ainda no salão, próximo ao bonde, sentei-me num banco de madeira igual àqueles que se encontram nos pontos de parada em San Francisco. Fiquei contemplando, deslumbrado, o meu bonde.
 Depois de algum tempo subi e ocupei meu lugar na mesma posição de sempre. Fechei os olhos e comecei a imaginar o bonde despencando ladeira abaixo até parar, suavemente, na parte plana da cidade.

Foi quando comecei a ouvir as vozes. A principio em tom baixo, como em surdina, elevando-se aos poucos, inconfundíveis no seu sotaque californiano. O que estaria acontecendo? A voz do condutor que alertava os passageiros, “watch your steps, watch your steps”, vozes de crianças nos bancos traseiros, um senhor que diz a alguém – provavelmente conduzindo um guarda chuva – “expecting rain, my dear?”, o blém... blém da sineta anunciando a saída , novamente a voz do condutor “be seated all of you, we are leaving!”.
No meu enlevo eu sentia a felicidade invadir-me. Eu me perguntava como é que aquilo poderia estar acontecendo comigo. Eu estava vivendo, certamente, um fenômeno psicofônico, como o chamam os espíritas.
As ondas do cosmos são, efetivamente, um grande mistério mas naquele momento eu entendi que havia alguma coisa além desta vida. Vozes humanas que um dia, quem sabe há quanto tempo, ecoaram através daqueles bancos e agora se materializavam para dar testemunho de que a vida, o sopro vital, não se extingue.

Estupefato, desci do bonde e sentei-me novamente no banco de espera. As vozes cessaram. Continuei no meu enlevo dando graças a Deus por ter-me contemplado com aquela experiência. Voltei a subir no bonde.
 As vozes voltaram, de pessoas diferentes, o mesmo blém... blém da sineta. Era espantoso. A partir daquele momento eu não seria mais o mesmo.
 Eu teria que mudar muitas coisas no meu comportamento e preparar-me para o que, certamente, viria pela frente.
 Eu teria que me transformar numa pessoa melhor, mais tolerante, mais disponível. Eu teria que livrar-me das mesquinharias, da arrogância, dos pequenos preconceitos.

Resoluto, preparei-me para descer. Antes, porém, em pleno êxtase, levantei os olhos para o céu agradecendo a Deus por aquela experiência que me tocara tão profundamente transformando-me num ser diferente, privilegiado e, conseqüentemente, mais responsável.

 No teto do bonde entre lâmpadas, balões e buquês de flores, escamoteadas entre as flores, duas caixinhas acústicas da Sony me traziam de volta à terra. A partir daí não foi difícil descobrir a célula fotoelétrica colocada no estribo do bonde, que registrava a subida e descida dos passageiros.
 Esses japoneses...!

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