18 dezembro 2006

OS ENVIADOS DE DEUS

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 Um leitor desconhecido escreveu um comentário sobre a minha recente “compostagem”(1) intitulada “O FALSÁRIO”. Segundo ele, o homem das sobrancelhas grandes era um “enviado de Deus”. Nesse comentário, ele faz uma análise psicológica (deve ser do ramo) do bom velhinho e de como ele interpretou o comportamento da criança e do tipo de castigo aplicado: fazer com que ela mesma sentisse vergonha do seu comportamento e, assim, emendar-se. O repúdio, o afastamento, a humilhação, a execração poderiam, nesse caso, resultar na formação de uma criança revoltada e inutilizada para o resto da vida. Reconheço que estou me intrometendo em terreno que não conheço. Nunca estudei psicologia. Posso estar dizendo bobagens.O fato é que o comentário me impressionou. Não vou reproduzi-lo aqui, mas, recomendo que o leiam. Refletindo sobre o assunto lembrei-me de outras situações difíceis em que fui ajudado por pessoas generosas que, mesmo sem me conhecerem, me tiraram das dificuldades. Uma dessas pessoas foi, sem dúvida, o Professor Rocha. Rocha era professor de inglês. Em 1948 o Governo Federal, em convênio com o Senai, criava no Rio de Janeiro a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil destinada a formar técnicos para a indústria têxtil de todos os Estados do país. A cada Estado foi atribuído um número de vagas proporcional ao tamanho de sua indústria têxtil. Pernambuco recebeu cinco vagas. Seria feita uma prova de seleção em cada Estado e os aprovados seriam enviados ao Rio. A escola oferecia alojamento e pagava todas as despesas de viagem. Uma vez no Rio os alunos seriam submetidos a novo exame para que se efetivasse a admissão. Os reprovados receberiam a passagem de volta. Eu estava concluindo o curso industrial básico (que equivalia ao ginasial) de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, também da rede federal e também como aluno interno. A escola ficava no Derbi (o prédio ainda está lá) bem na margem do Capibaribe, flanqueada por duas enormes figueiras (não estão mais lá) nos fundos da Maternidade do Derbi e ao lado do Necrotério Municipal. Assim, eu me acostumei a ouvir, durante a noite, os gritos desesperados das parturientes (naquele tempo não se faziam cesarianas a não ser nos casos de emergência) e, durante o dia, a acompanhar os cadáveres de indigentes, criminosos, suicidas e todos quantos não morriam de morte natural quando, depois da autópsia, eram enfiados nas gavetas do frigorífico do Necrotério. Nas noites de sábado ia ao cinema do Quartel (creio que era da Polícia Militar pois a farda era cáqui) situado na extremidade da Praça do Derbi. Era de graça. O médico da Escola era o Dr. Hilo Lins e Silva a quem coube salvar minha vida em um acidente que sofri durante uma prática nas oficinas. Encerrado o curso de mecânica, em Novembro de 1947, o diretor - Manoel Vianna de Vasconcellos – (espero não ter errado na grafia do nome) mandou-me chamar e informou-me sobre o curso que estava sendo criado no Rio. Se eu quisesse continuar estudando sem custo, não haveria oportunidade melhor. Resolvi enfrentar a prova de seleção. Eu tinha medo. No ginásio os alunos estudavam latim, inglês, até poesia se ensinava lá. No curso industrial não tínhamos nada disso. Eu não tinha como competir com os ginasianos. Preenchi o formulário de inscrição com mão trêmula. A prova foi realizada no Colégio Marista que ficava na Boa Vista. Uma multidão se acotovelava no pátio imenso. O meu terror aumentou quando comecei a ouvir a conversa dos candidatos, todos mais velhos do que eu. A maior parte já havia concluído o curso científico e muitos deles faziam curso superior. Cinco vagas! Enfrentei a prova aterrorizado. Quando a notícia chegou eu estava ralando milho verde para uma canjica, com as mãos bastante esfoladas. Eu estava entre os cinco. Muitas lágrimas se incorporaram ao milho ralado e, talvez por isso, a canjica nesse dia tenha ficado tão saborosa. Devorada a canjica, mergulhei no estudo, preparando-me para o exame de admissão. Em Fevereiro de 1948 embarquei, deslumbrado, num DC3, no que seria minha primeira viagem de avião. Do Recife ao Rio durou 8 horas. Lembro-me das escalas, mas não de todas: Maceió, Aracaju, Salvador, mais uma ou duas, Canavieiras, Cabrália, Vitória, Ilhéus, mais uma ou duas e, finalmente, Rio de Janeiro. Ficamos alojados num casarão em São Cristóvão, na Rua Bela. (será que ainda tem esse nome?). O bonde, curiosamente, tinha o mesmo número do da Vila Maria: 34 que fazia ponto final na Praça Tiradentes. O nome da linha? Alegria. Seu Alfredo, embalsamado em um par de calças risco de giz, uma jaqueta preta de lapelas lustrosas e gravata borboleta, também preta, servia as refeições. Podia-se comer à vontade. Tudo muito chique. Pela manhã eu acordava com o cheiro do café e do pão fresquinho. A Escola ficava no bairro do Riachuelo, na linha da Central, quando o morro do Jacarezinho não passava de um bucólico e pacífico aglomerado de casebres com telhados de zinco. Eu estudava como um fanático já que iria competir com alunos que vinham de todos os Estados do Brasil. Não podia falhar. Mas, desta vez, a conversa com os colegas me tranqüilizava, pois eu podia avaliar o nível em que se encontravam e me sentia seguro. Entrei na prova calmo e confiante. Dos cinquenta candidatos, seis foram reprovados e voltaram para os seus respectivos Estados. Os 44 alunos que formaram a primeira turma de técnicos têxteis na Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil foram matriculados por ordem de classificação no exame de admissão. O meu número de matrícula foi 1. As aulas se iniciaram com o edifício da escola ainda em construção. Não havia portas nem janelas. Muitas vezes a aula tinha que ser interrompida por causa do barulho das betoneiras e serras circulares. Meu fervor pelo estudo era renovado a cada dia pelo cheiro das máquinas novas que eu aprendia a montar nas oficinas da fiação. A expectativa da chegada dos teares me deixava eufórico. Foi aí que um fato perturbador veio tirar-me a paz. No curso havia a cadeira de inglês a qual não havia sido preenchida, até a metade do primeiro semestre, por falta de professor. No curso industrial, de onde eu vinha, não havia aula de inglês. A única palavra que eu conhecia era “camoni-boi” que havia aprendido na Vila Maria quando brincava de faroeste e, mesmo assim, não sabia o que significava. Todos os demais alunos vinham dos cursos ginasial e científico. Alguma coisa sabiam. Pela metade do semestre chegou o Professor Rocha. Mostrou-se logo uma pessoa simpática, sempre alegre e grande contador de histórias. Era irmão do Carlito Rocha, treinador do Botafogo, que gozava de imenso prestígio no futebol brasileiro. No primeiro dia de aula, Rocha explicou: “Como perdemos mais de dois meses de aula eu vou fazer uma avaliação do nível em que vocês se encontram e começarei as aulas por aí.” E assim foi, para meu desespero. Eu não entendia nada. Chegado o fim do semestre foi aplicada a “prova parcial”. Naquele tempo existia uma prova parcial, no fim do primeiro semestre, e uma prova final, no fim do segundo semestre. A nota para a promoção de ano era uma média das duas. Entreguei minha prova praticamente em branco e fui chorar escondido. Na aula seguinte, Rocha chegou com as provas, distribuiu a cada um a sua, e começou a ler as respostas corretas para que cada um comparasse com o que havia feito. No topo da prova, dentro de um círculo, a nota de avaliação. Quando recebi a minha prova fiquei perplexo, sem poder acreditar. Um 7 claro, inequívoco, firme, sem vacilação. Permaneci mudo, os cotovelos sobre a banca, a cabeça entre as mãos, contemplando o professor. Ele me olhava, de vez em quando, sem bater pestana. Esperei que todos saíssem para devolver minha prova, com a mão trêmula de emoção e a voz embargada: -- Professor, muito obrigado. Entregou-me um maço de folhas soltas. Eram exercícios. E, segurando meu ombros com ambas as mãos para manter-me na linha de eixo de suas palavras, disse-me, com olhar firme: -- Não tenha medo. Estuda que você passa. (1)

(1) Compostagem : Método usado pelos camponeses para produzir adubo orgânico, principalmente nas pequenas propriedades. Consiste em aproveitar os resíduos vegetais oriundos de capinas, podas, desbastes, etc. formando pilhas as quais, através da ação de microorganismos existentes na terra, fermentam, decompondo o material de tal forma que o transformam em um pó escuro, fácil de manusear e de cheiro agradável. Durante a fermentação, que ocorre espontaneamente, a temperatura interna da pilha pode alcançar até 80º centígrados. Uma pilha de composto leva mais de um ano para ficar pronta. Minhas compostagens, também.

2 comentários:

  1. Confesso que a muito tempo não me arrepiava ao ler um texto... pessoas podem sim fazer a diferença na vida uma das outras. Independente da religião, fazer o bem sempre fará a diferença. E parabéns por fazer a diferença! (Obrigada Rachel Affonso por me indicar o blog)

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